A utilidade da [minha] pesquisa científica, revisitada

Hugo Cristo
7 min readDec 3, 2022

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Em 2018, durante meu estágio de pós-doutorado, escrevi um post discutindo qual a utilidade da [minha] pesquisa científica. Aquele afastamento de 12 meses me proporcionou, pela primeira vez, tempo para pensar os passos seguintes da minha carreira acadêmica.

Fiz o mestrado e doutorado trabalhando, sem afastamento e sem bolsa, como muita gente. Não há nada de especial nisso, pelo contrário. Acredito que todos nessa situação gostariam de ter mais tempo para avaliar decisões, ampliar leituras, refinar seus textos, entre outras questões importantes que assombram pós-graduandos. O estágio de pós-doutorado com afastamento me ajudou a estudar temas de “fundo” da atividade científica, especialmente aqueles sem impacto imediato nas tarefas exigidas pelas pesquisas que desenvolvi no mestrado e doutorado: história, epistemologia e filosofia da ciência; biografias de cientistas que me inspiram; fundamentos de estatística, incluindo disputas sobre suposições que ignoramos em busca do que “funciona” no prazo que temos; e modelagem, tanto matemática quanto computacional.

No texto de 2018, me perguntei sobre os impactos da minha própria pesquisa para o desenvolvimento do país. Estávamos em ano eleitoral e imagino que todos se lembram do clima hostil, marcado por ataques às universidades, à ciência, ao “globalismo” e outras dissonâncias que agrupo sob a alcunha do terraplanismo. A dissonância venceu as eleições naquele ano, mas está bem perto do fim.

Quatro anos mais tarde (2022), tenho outra oportunidade de pensar a carreira, desta vez por meio de licença para capacitação. Este é um direito que servidores públicos federais podem gozar a cada cinco (5) anos, mediante apresentação de um plano de estudos, realização de cursos de qualificação, atualização e afins. Relatei meus objetivos para a licença em uma série (em andamento) de vídeos curtos, publicados no Instagram e no YouTube.

Ao revisitar minhas preocupações de 2018, a única mudança foi o aumento no tamanho da interrogação sobre a relevância da minha pesquisa. Naquele artigo, comentei que parte substancial das nossas investigações surgem de curiosidades e acasos da vida, nem sempre conectadas às urgências do país. Isso não explica, embora ajude a entender a desconfiança do cidadão comum em relação ao que se passa dentro dos laboratórios e grupos de pesquisa das universidades. Nem todo conhecimento produzido é imediatamente aplicável, nem poderia ser.

Cabe enfatizar que a própria distinção entre ciência básica e ciência aplicada é artificial, forjada por gênios como Vannevar Bush para manter o investimento público em pesquisa após a Segunda Guerra mundial [ver, p.ex., Stokes]. Sempre que cientistas recorrem a esta oposição para se “diferenciarem” no mercado acadêmico, ajudam a confundir a sociedade sobre a função social do investimento público em pesquisa.

Vannevar Bush, julgando nosso terraplanismo de cada dia.

Em países como o Brasil, onde tudo é urgente e o dinheiro [para quem não tem influência nem padrinhos] é curto, existe o risco de se adotar critérios para priorizar investimentos do tipo “vender o almoço para comprar a janta”. Financiar somente pesquisas que produzem resultados imediatos estrangula as chances de se obter resultados de longo prazo, que não surgem por descontinuidades, mas incrementalmente.

Em novembro, estive na Argentina para visitar o Centro Interdisciplinario de Investigaciones en Psicología Matemática y Experimental “Dr. H. Rimoldi” (CIIPME), vinculado ao CONICET, equivalente portenho do nosso CNPq. Fundado nos anos 1970, o CIIPME é o único instituto que encontrei na América Latina, até o momento, dedicado a pesquisas em psicologia matemática. Tenho inúmeras hipóteses sobre a inexistência de instituições assim por essas bandas, o que faz pouca diferença para este post. No contexto da utilidade de pesquisas científicas, minhas ou do CIIPME, a história deste instituto é uma aula sobre como construir utilidade para teorias, métodos, técnicas e resultados em qualquer área.

A psicologia na Argentina é diversa, como no Brasil, embora seja possível falar de vertentes majoritárias ou, de certa forma, mais influentes — leia-se psicanálise. A psicologia matemática não está, atualmente, entre as áreas mais populares para os argentinos, como não estava nos anos 1970. Horacio Rimoldi, fundador do CIIPME, teve uma carreira de destaque entre psicometristas, tendo L. L. Thurstone como um de seus mentores. Rimoldi atuou em instituições na Inglaterra, EUA, Porto Rico e Uruguai, até que finalmente mobilizou pessoas e recursos para estabelecer o centro dedicado à psicologia matemática e experimental na Argentina.

Entrevista rara com Horacio Rimoldi (acervo CIIPME).

A estrutura do CIIPME, em 1980, contava com matemáticos e estatísticos, trabalhando junto a psicólogos, todos em carreiras do CONICET com dedicação exclusiva — um total de 38 profissionais. Adquiriram um computador Hewlett Packard 1000, contrataram programadores para a integrar a equipe e desenvolver softwares para analisar dados das investigações. Para situar o pioneirismo desses investimentos, o ancestral do computador pessoal que temos hoje (Alto PC) foi criado apenas sete anos antes (1973), no célebre Xerox Parc. Pode não parecer grande coisa nas engenharias ou matemática, porém, na Psicologia dos anos 1980, é a vanguarda em grande estilo.

E tem mais: a equipe contava com revisores e tradutores, que apoiavam os processos de tradução e publicação dos resultados em periódicos de outros países e idiomas. A biblioteca e acervo são espetaculares, e o domínio de Karina Rodriguez, bibliotecária do CIIPME que me recebeu, é um indício de que a estrutura de gestão do centro se perpetuou.

Desde 1971, o CIIPME editou uma série de boletins, enviados a instituições pelo mundo, relatando os progressos das pesquisas em curso. Na década seguinte, inaugurou um periódico científico, intitulado Interdisciplinaria, que segue ativo. É notável o esforço da instituição em prestar contas de suas atividades científicas fora dos canais tradicionais, tais como periódicos científicos, livros, teses e dissertações. Assim mesmo, o CIIPME publicou manuais, programas de intervenção e coletâneas com trabalhos realizados.

O centro mantém, nos dias de hoje, a proposta inicial de ter bolsistas que desenvolvem pesquisas internamente, mesmo sem manter vínculos formais com universidades. Sua independência o torna mais próximo dos institutos de ciência e tecnologia que temos no Brasil. Em uma conferência, feita na ocasião de 10 anos de fundação do CIIPME, Rimoldi relatou que cerca de 70% da equipe inicial permanecia no centro. Imagine um programa de pesquisa que consegue avançar por uma década, mantendo a equipe. Em comparação, quando consigo manter bolsistas por dois semestres ou mais, é motivo de festa…

As pesquisas desenvolvidas na fase inicial do CIIPME me interessam bastante: resolução de problemas, habilidades matemáticas, avaliação da aprendizagem, desenvolvimento e validação de instrumentos e escalas, investigação do raciocínio clínico de estudantes do ensino superior, entre outros. Considerando que a instituição não existia e que a pesquisa em psicologia matemática precisou ser “induzida” na Argentina, os resultados que identifiquei nos primeiros dez anos de atividade são surpreendentes. Textos posteriores de Rimoldi fornecem panoramas privilegiados dos desafios de criar utilidade para o conhecimento produzido no CIIPME.

Nos anos 1990, o centro distanciou-se um pouco da abordagem matemática, incorporando métodos qualitativos e mistos ao rol de especialidades. Os anos que se seguiram ao fim da ditadura na Argentina postularam uma série de problemas sociais que demandaram diferentes perspectivas de investigação. Segundo Karina, houve oscilações nas ênfases do CIIPME, em parte por mudanças na gestão, em parte por mudanças na equipe de pesquisadores. O fato é que a onipresença dos computadores e da computação na prática científica contemporânea exigem a (re)aproximação com métodos e técnicas da matemática.

Finalmente, o site do CIIPME é uma fonte atualizada de suas atividades, que englobam palestras, seminários e lives no YouTube.

No retorno da visita, estou desbravando a montanha de dados que encontrei no acervo do CIIPME. Há muitas personalidades conhecidas da ciência argentina, como Nuria Cortada de Kohan, que mantiveram interações com a instituição e seus integrantes. A revisão da produção que estou fazendo é grande e segue aumentando.

Transformei o Loop no Forma para tentar cumprir objetivos semelhantes aos almejados com a fundação do CIIPME. O momento e o contexto são, obviamente, distintos. No entanto, pesquisas em psicologia matemática são tão escassas no Brasil quanto eram na Argentina, e a aplicação crescente de modelos matemáticos e computacionais às investigações da cognição são extremamente fortuitas. Restam os desafios de viabilizar a estrutura com pessoal e recursos equivalentes, e demonstrar a utilidade desta abordagem para as urgências e problemas de longo prazo que o país precisa solucionar (novamente, este é meu palpite sobre o que importa).

Você pode estar se perguntando se eu decidi fundar o Forma depois de conhecer o CIIPME. A resposta é sim, com ressalvas. Sem o exemplo argentino, assumiria que o desafio é muito maior do que realmente é. De uma forma ou de outra (sem trocadilhos), meu trabalho caminhava para a psicologia matemática desde o final do doutorado, em 2013–14. Sem dúvidas, a empreitada parece menos impossível quando alguém mais próximo (ou menos distante) obtém sucesso.

Em termos práticos, coletei dados de uso do Fred2, meu sistema personalizado de ensino (PSI), durante cinco semestres letivos, de 2020/1 a 2022/1. Também registrei todas as atividades baseadas no ambiente RocketSocket de quatro turmas do Curso de Design. O relato desta experiência foi submetido, aprovado e apresentado no P&D 2022, e será publicado no periódico Projética da UEL, ainda no mês de dezembro.

O vídeo de apresentação (10min) do relato de experiência com RocketSocket, apresentado no P&D (Out/2022).

A psicologia matemática é minha aposta para investigar os efeitos dessas duas tecnologias sobre a aprendizagem, primeiramente de estudantes do Curso de Design. Em seguida, se as evidências qualitativas que coletei por meio dos depoimentos dos estudantes forem corroboradas pela modelagem matemática do desempenho registrado nos sistemas, pretendo abrir gradualmente as duas tecnologias para uso da comunidade em geral.

Não bastará fornecer acesso: no caso de RocketSocket, precisarei oferecer um conteúdo programático básico, instrumentos de avaliação confiáveis e validados para apoiar professores e estudantes; quanto ao Fred2, o desafio consiste em aprimorar o “painel de controle” que aponta estudantes com dificuldades e auxilia na elaboração de remediações em tempo hábil. Pretendo comparar os efeitos dos princípios do PSI sobre a aprendizagem com as práticas vigentes no ensino de Design. Escrevi sobre isso antes [p.ex., 1, 2] e sigo investindo tempo no assunto.

Se tudo correr bem, pretendo elaborar projeto de pesquisa e subprojeto de iniciação científica na temática, e ofertar uma disciplina no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Ufes para disseminar a abordagem entre mestrandos e doutorandos. Meu sonho seria encontrar orientandos de mestrado dispostos a encarar a jornada.

Você teria um minuto para ouvir a palavra de Rimoldi?

(É útil, eu prometo.)

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