A educação na piscina
Em meio ao apocalipse, fico mais pensativo sobre o que vai acontecer com a educação brasileira. Em meados 2017 eu estava em crise (de saúde, inclusive), precisando parar e refletir sobre práticas de sala de aula. Funcionava, pero no mucho. As turmas aprendiam meio que “na marra”.
Havíamos saído das ocupações do segundo semestre de 2016 e, na minha opinião, as relações professor-aluno ficaram terrivelmente abaladas. Sentia como se aquela confiança que os alunos tinham, de que estávamos fazendo o melhor “possível” nas disciplinas, tinha ido para o espaço.
No começo de 2017, houve aumento do excesso de trabalho para colocar o cotidiano de sala de aula em dia nas reposições de 2016/2. Nem todo aluno quis repor e abandonou o semestre. O semestre 2017/1 foi um recomeço estranho para mim. Além do clima, ainda tinha o acordo, com supremo e com tudo, e o teto de gastos. O que estamos vivendo agora foi semeado ali.
Nesse contexto, tive o tal burnout e resolvi tirar o pé do acelerador, pensar na carreira e na vida. A melhor coisa do mundo foi descobrir o curso de ensino de habilidades de estudo no Centro Paradigma (SP). Como a maioria dos professores, aprendi a dar aula sendo aluno (leia-se desastre).
Passei bons quatro dias levando porradas sistemáticas e percebendo que professor desgraçado eu era. Parte fundamental da desgraça era a reprodução de práticas que eu não sabia a origem, nem compreendia a eficiência. Todas, sem exceção, aprendidas no ensino superior (aí vem a lista tenebrosa):
- Aluno bom é aquele que se vira.
- Quem tem interesse corre atrás.
- Eu ensinei, se o aluno não aprendeu é problema dele.
- Matéria boa é aquela em que o aluno sofre (ou se mata) para aprender.
- Aluno de ensino superior já tem que saber o “básico” sozinho, afinal passou pelo Enem/Sisu… 💀👹👌
Todo mundo conhece outras falácias pra completar a lista, dentre as quais está a minha favorita:
Os alunos passam, nós [professores] ficamos.
No curso do Paradigma, que definitivamente mudou minha vida, conheci a metáfora que melhor explica o problema. Os percursos nas matérias são como piscinas. No começo do semestre, empurramos os alunos para a água e eles ainda não sabem nadar. Corremos para o outro lado e torcemos para eles conseguirem atravessar sozinhos. Engolem água aqui, se afogam acolá, mas acabam cruzando a piscina.
Quando terminam, quase mortos, premiamos o sacrifício e a superação, colocando no pódio o modelo irreal do “aluno atleta” que teve preparo físico e fôlego para aguentar a travessia. Alguns colegas, quando se deparam com alunos com dificuldades, perguntam: “o que você faz de meia-noite às seis da manhã?”
Na contramão de todos os achados científicos do último século, ensinar ainda pode ser perverso. Sabemos o valor de uma boa noite de sono, da importância de ter momentos de distração, da necessidade do processo de aprendizagem não ser uma máquina de moer alunos 40 horas por semana sem descanso.
Não acho que o professor seja vilão, mas falta formação. Falta apoio, falta orientação. Tenho uma inveja danada dos meus professores da educação básica, que acompanhavam cada um de nós tão de perto que, quando apareceu o curso de Design no Vest-Ufes (1997), vieram me mostrar e disseram que era “a minha cara”. E não foi só isso. Meus professores do básico sabiam nossos interesses e nossas dificuldades, tentando sempre oferecer alternativas que valorizavam nossas estratégias aprender, cada um no seu estilo. Meus fracassos eram motivos de preocupação, não de indiferença ou orgulho (mais uma atrocidade para a lista — “reprovei 20, sou terrível”).
Claro que esta não foi nem é a realidade da maioria das escolas. Mesmo assim acredito que algo se perde quando passamos do ensino médio para o superior. Esta diferença ficou muito clara no curso que fiz. No ensino superior é “permitido” que o professor passe o semestre inteiro sem ouvir a voz ou saber o nome do aluno. A “vida” do aluno fora da sala de aula “não importa”.
As turmas das disciplinas obrigatórias das universidades públicas são grandes (média 40 alunos, com raros momentos de 20), há muito trabalho (ensino, pesquisa e extensão), complica mesmo. Mas e se não houver outro modo? E se para ensinar a nadar seja necessário acompanhar cada um, reconhecendo até quando aquele aluno precisa permanecer no raso e de boia, antes de ganhar e depois perder sua prancha? Ou manter a travessia mais curta para alguns, perpendicular ao comprimento da piscina, enquanto ainda não têm confiança (ou fôlego) para atravessar seguindo as raias? E se houver alunos que preferem futebol em vez de natação?
O clichê dos coaches quânticos de educação disruptiva diz que temos escolas pensadas como indústrias do século XIX num mundo da inteligência artificial, da personalização total e da oferta on-demand do que quer que seja. Talvez.
O que eu vejo é a educação contemporânea assumindo o papel de contrapeso: quanto mais automação, mais precisaremos entrar na piscina para ensinar a nadar. Na minha avaliação, o tal aumento “exponencial” (odeio a forma como usam este termo de forma não matemática) das oportunidades de educação autodidata gerou mais desconforto e frustração do que densidade no que é aprendido. Chegamos ao cúmulo de presenciarmos a crença de que seria possível substituir a formação do Instituto Rio Branco por vídeos no YouTube.
O que eu fiz com minha piscina desde 2017/2? Foi difícil, precisei fazer um pós-doutorado no meio do caminho para estudar mais e aprender (engolindo água aqui, me afogando acolá) o que não me ensinaram quando “virei” professor. Neste semestre (2019/2), pela primeira vez em 15 anos de sala de aula, consegui implementar as mudanças a seguir.
Linhas de base e avaliações individualizadas do desenvolvimento
Todos os trabalhos são individuais. Estou monitorando os progressos de cada aluno individualmente em duas disciplinas obrigatórias na graduação (34 e 20 alunos) e uma optativa (11). Na pós-graduação ainda não sei como fazer, já que são mais independentes. Veremos.
Implementei, minimamente, uma linha de base sobre os conhecimentos prévios dos alunos antes do semestre começar. Mapeei o que eles não sabiam sobre o tema e perguntei o que gostariam de aprender. Ajustei o conteúdo do semestre em função das respostas, apresentei e discuti com eles se estavam de acordo com a proposta. No final do semestre, terei o acompanhamento da evolução e poderei aplicar novamente as questões de nivelamento para saber como cada aluno se desenvolveu.
Gestão da sala de aula
Voltei a fazer chamada, em vez de passar listas de presença. Na disciplina de Computação Gráfica, a turma está aprendendo a programar em HTML/CSS/JS. O único jeito de saber como todos estão indo é fazer chamada, identificar o aluno, perguntar se o código que ele acabou de fazer deu certo e, se não deu, ir até lá e ajudar.
Precisa ser um a um, numa turma de 34 alunos com 15 computadores no laboratório (teto de gastos e tal, lembram?). A turma colabora e aqueles que podem levam seus notebooks. Mesmo nessa disciplina prática, fiz a linha de base inicial e corrigi um primeiro trabalho teórico individual. Discuti as dificuldades de cada um na correção e apresentei uma discussão com os acertos e erros gerais com a turma toda.
A devolutiva deve ser feita o quanto antes, para que o aluno não passe mais de 2 dias sem saber se o que fez em casa, sozinho, está certo ou errado. Isto significou um esforço da turma de fazer as atividades para casa em prazo mais curto. Por exemplo, a turma da aula de sexta de manhã tem até a noite da quarta-feira da semana seguinte para postar as respostas online. Em 2017/2 e 2019/1, utilizei roteiros de estudo em PDF disponibilizados no Dropbox e combinei as entregas por e-mail (o filtro de spam surtou). Neste momento, tenho uma solução híbrida de Google Forms com scripts em R funcionando muito bem: importo os dados da planilha, gero os arquivos individuais em PDF, faço anotações sobre eles e publico no Dropbox.
Em breve colocarei para funcionar minha plataforma de ensino personalizado, desenvolvida no pós-doutorado a partir da pesquisa que fiz sobre Fred Keller. A plataforma permitirá reduzir o tempo da devolutiva de 2 dias para zero, o que é impraticável hoje com a correção manual. E mais: a plataforma oferecerá as alternativas (nadar no raso, boia, pranchinha, travessia perpendicular) conforme as dificuldades do aluno. Cada um no seu trajeto e no seu tempo, e eu poderei investir esforços onde interessa: ajudando o aluno em sala de aula, enquanto trabalha e tem dúvidas.
Economia de tokens
Esta é a parte divertida das mudanças. Como cada um faz seu trabalho, alguns ficam com receio de expor suas respostas nas discussões coletivas. Estou experimentando mecanismos de recompensar participação com chocolate (ou outra fonte de felicidade) nos momentos de debate. Parece coisa do jardim de infância aplicada a adultos, mas funcionou bem para engrenar a participação como não presenciava há muito tempo. Depois que a interação começa, o incentivo não é tão necessário para manter a conversa em curso. Há literatura suficiente avaliando os prós e contras da economia de tokens e, desde que devidamente avaliado, pode ser um recurso interessante para quebrar o gelo inicial da participação nas aulas.
Rotina presente e futura do professor
Tenho muito mais trabalho, isso é inegável. Precisei reorientar minha semana para ter momentos livres para corrigir os trabalhos individuais e preparar a aula com base nas dificuldades dos alunos (eu deveria estar corrigindo trabalhos agora, mas estou procrastinando no Medium). A recompensa é poder perceber os avanços da turma de forma mais presente e elaborar um repertório de “dificuldades recorrentes”, que poderão me ajudar a repensar e aperfeiçoar as os conteúdos, avaliações e estratégias de ensino nos próximos semestres letivos.
Minha principal preocupação neste momento é o potencial aumento no número de turmas ou de alunos por turma que estão no horizonte do programa Future-se. Pode ser difícil manter esta dinâmica se minhas turmas forem do mesmo tamanho que 2019/2 (40, 36, 25), e provavelmente impossíveis nas turmas de 60 pessoas desejadas pela “eficiência” do MEC. A plataforma que desenvolvi é minha aposta para enfrentar o aumento sem perder o acompanhamento.
Em visita recente à McGill University, pude conhecer uma sala de aula do ciclo básico deles que comporta 500 alunos. Há toda uma estrutura de apoio intra e extraclasse (monitores para cada 20–30 alunos, gravação das aulas em vídeo, plataforma online, preparação do professor para falar para “plateias”) para compensar a distância transacional. Eles não admitem a chance de afogamento e implantam bem mais do que boias e pranchas. Fiquei absolutamente impressionado com o cuidado das instituições canadenses (públicas, porém pagas) com seus estudantes. No caso brasileiro, se nem com 30 alunos houve tal estrutura, imaginem agora.
Sigo preocupado, mas focado em melhorar a travessia da piscina.
PS: Este post era pra ser um fio no Twitter. Desisti por achar que o relato merece ficar aberto e peço desculpas pelos parágrafos curtos de quem estava pensando e tuitando como se não houvesse amanhã.