Universidade pública: condições de trabalho, expectativas e carreira

Hugo Cristo
21 min readMar 2, 2018

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Texto publicado originalmente em 01/03/2018 no meu site.

O clichê manda lembrar que o ano novo brasileiro começa após o carnaval. Para muita gente neste país, 2018 começou em 2016. No meu caso, os últimos dois anos foram de profundas mudanças de expectativas em relação à carreira do magistério no ensino superior, especialmente em função das agendas impostas ao país pelos grupos que “acordaram” em 2016 (ou 2013, dependendo do ponto de vista).

Não costumo blogar questões pessoais e tendo a escrever sobre meu trabalho. Entretanto, frente ao cenário recente do país, cheguei a um dilema na carreira com apenas dois caminhos possíveis: burnout, se continuasse naquele trajeto; ou reboot, para mudar de direção e começar tudo de novo, back to basics… Mas o que é básico?

PS: No melhor estilo Yoda, eu inverti a estrutura da fala e publiquei o texto posterior antes deste. Parte do pós-doutorado o reboot é.

1. Frustrações da academia

Talvez este seja o tema mais discutido na academia recentemente, no Brasil e além. Tenho lido bastante sobre os excessos que definem a vida acadêmica, eventualmente compartilhando sugestões [por exemplo, 1 e 2]. Descobri as discussões um pouco tarde (~Ago/2017) e me identifiquei bastante com várias práticas nocivas. Felizmente não atingi o limite trágico que define o destino de muita gente a ponto de abandonar a carreira ou as esperanças no mundo.

Para contextualizar, preciso esclarecer que o serviço público federal tem funcionado como saco de pancadas da polarização instalada no país. Desde o golpe, com o Supremo e com tudo, nos tornamos o judas da grande mídia, das políticas neoliberais oportunistas e do cidadão desinformado. Somos uma casta de privilegiados, com regalias, super salários, benefícios que inexistem na iniciativa privada e devem ser excomungados.

“É assim que se faz…”

Bem, há privilégios. O problema é que a superficialidade (ou oportunismo) dos telejornais juntam no mesmo saco os marajás do judiciário, que recebem acima do teto constitucional, e a ralé do serviço público (professores, policiais etc). A maioria dos veículos reconhece as diferenças, mas a notícia vendida não distingue as categorias do funcionalismo na manchete [exemplos infinitos: 1, 2, 3…], deixando os detalhes para a parte que ninguém lê, que não aparece no preview do Facebook, ou que o Bonner não tem tempo de mencionar… O estrago está feito junto à opinião pública, que comprou o discurso de que é preciso acabar com a “farra” do funcionário público que ganha mais que o da iniciativa privada (nós professores, inclusive), aumentar a eficiência (sem dizer como) e privatizar tudo o que for possível.

Para não parecer revanchismo de marajá com receio de perder auxílios, prefiro evitar os debates infinitos e improdutivos das redes e pensar o cotidiano da instituição na qual trabalho. Quais são as nossas condições de trabalho, comparadas ao professor da iniciativa privada? Como nosso desempenho é avaliado, por quem e quais as consequências dessa avaliação? E como as respostas a essas perguntas me ajudaram a repensar a carreira nos últimos dois anos e daqui em diante?

2. As condições de trabalho

Comecei a lecionar em 2001, quando ainda era estudante universitário. Fui instrutor de cursos técnicos de webdesign do Senac do Espírito Santo. No ano seguinte à minha formatura (2004), passei no concurso para professor substituto no curso de Design da Ufes e comecei a dar aulas no curso de Design da UCL. No segundo semestre de 2004 fui contratado pelos cursos de Publicidade e Jornalismo da Estácio de Sá, onde permaneci até dezembro de 2008. Na Estácio coordenei laboratórios acadêmicos (agência experimental) e o curso de Publicidade. Tive uma breve passagem pelo curso de Moda da Faculdade Novo Milênio e pela pós-graduação da Faesa. Se estudar em escolas particulares conta como subsídio para fazer comparações, tive a oportunidade (privilégio) de estudar nas melhores antes de ingressar na Ufes em 1998. Fiz concurso para professor efetivo da Ufes em 2009 e comecei a lecionar em julho daquele ano.

Universidades públicas e privadas são planetas completamente diferentes. No meu auge como docente na Estácio (2007), tinha 28 horas de sala de aula (sem planejamento remunerado) e era contratado por 40 horas semanais. O regime de trabalho havia migrado de professor horista para mensalista, com a perspectiva de que poderíamos utilizar as horas remanescentes da sala de aula em projetos de ensino, pesquisa extensão. No caso dos curso de Comunicação, isso significava basicamente usar minhas 12 horas que estavam “sobrando” para orientar projetos na agência experimental (componente curricular exigido pelo MEC) e trabalhos de conclusão de curso. Nada mais. Professor de faculdade particular, em geral, faz pesquisa e extensão porque quer, não porque tem incentivos [dados de 2018: notícia, relatório completo].

Fonte: Clarivate Analytics — produção científica das principais universidades brasileiras 2011–2016 (p.42)

Posso endossar o cenário do relatório acima, pois fiz pesquisa e extensão enquanto estive nas faculdades privadas, contra a maré: o GVCrime (2007) contou com apoio institucional da Estácio (leia-se ceder alunos voluntários) e da Favi (emprestar uma sala da clínica do curso de Psicologia em horários ociosos para fazermos reuniões). Hora de professor de instituição privada é hora-aula durante o semestre letivo e hora-bunda durante o recesso (ir até o local de trabalho, bater ponto e ficar sem fazer nada).

É óbvio que existem PUCs, só que ainda assim estão longe do pelotão de elite da produção científica nacional. Há ilhas de excelência, mérito do esforço descomunal de docentes que captam recursos por conta própria. Um belo dia, a instituição percebe os resultados (mídia espontânea, chamariz de novas matrículas) e colabora. Raros são os casos de investimentos no risco (ideias novas) ou em projetos que não conseguem se financiar (90% da área das humanidades?). A extensão, nessas instituições, se manifesta sempre que há alinhamento entre as exigências do MEC sobre os componentes curriculares e a prestação de serviços à comunidade: núcleos de prática jurídica, agências experimentais de comunicação, academias, clínicas-escola e assim por diante. Se a extensão aparece (atrai mais matrículas) e ainda por cima cumpre as exigências das diretrizes nacionais para o curso, terá sobrevida.

As turmas são grandes nos primeiros períodos e tendem a diminuir em proporções variadas conforme cada curso avança. Já tive turmas que começaram com 50 estudantes e cerca de 20 se formaram quatro anos mais tarde. Um ponto interessante é a prática de oferecer orientações coletivas de monografias: dois ou três professores ficam à disposição de turmas inteiras de estudantes, no mesmo horário, sem haver um “orientador fixo”.

Em relação à gestão acadêmica, as instituições particulares são escolas-empresas. Sempre tive o apoio pedagógico por perto (até para imprimir provas), alguma assessoria de comunicação e marketing, secretaria acadêmica do tipo help-desk com ouvidoria (o gargalo do relacionamento instituição-aluno). O diretor acadêmico é bem próximo dos coordenadores de curso, que na prática contratam e demitem professores, captam alunos (fiz telemarketing inúmeras vezes, corrigi prova de vestibular seguindo orientações de passar todos que atingissem “o suficiente”) e atuam na retenção deles (fiz reuniões com pais sobre alunos fujões, banquei o conselheiro familiar e até conjugal). Alunos são números numa planilha e matrículas são metas a atingir, como qualquer empresa… Ainda que parte dessas matrículas sejam custeadas via Prouni ou FIES.

Há sistemas para tudo (presenças, notas, disponibilizar materiais), bons laboratórios (informática, didáticos, tudo que o MEC exigir e nem uma vírgula a mais) e bibliotecas. Na visita das comissões de avaliação do Inep (aquela que gera parte do CPC) o diretor geral tira o cartão platinum corporativo do bolso, se for necessário, para atingir o número de exemplares por aluno no acervo bibliográfico do curso. Numa instituição particular, aquilo que puder ser oferecido ao aluno sem envolver professores (os tais 20% semi-presenciais), será.

Vamos às instituições públicas: há muitas variações, mas pode-se esperar algo entre 12 e 20 horas de carga horária semanal máxima para os professores em regime de dedicação exclusiva (DE, jornada de 40 horas). Cada hora-aula tem (dependendo da instituição, na Ufes isso está em disputa neste momento) 1,5 hora de planejamento. Sendo assim, o professor médio das universidades públicas que ministra 16 horas de disciplinas (ex: quatro turmas de quatro horas semanais), teria 24h de planejamento e integralizaria sua jornada de 40 horas. Se permanecermos na análise fria dos números, as condições de trabalho do professor do magistério superior público (federal, o estadual varia mais) são realmente muito melhores do que as de seus colegas nas instituições privadas.

Nem de longe é o caso e por isso fiz questão de desenhar as particulares de forma mais cuidadosa nos parágrafos anteriores.

Em geral, são raros os casos de turmas com menos de 30 alunos nas instituições públicas, com a exceção de disciplinas optativas (conheço casos discrepantes em outras instituições, se alguém quiser saber). Essas turmas grandes não fazem distinção do conteúdo, da relação monitor ou equipamento (ou estrutura física da sala) pelo número de alunos matriculados. O professor das instituições públicas recebe exatamente o mesmo salário se der oito, 12, 16 ou 20 horas de sala de aula; se tiver nenhum ou 15 orientandos de monografia (minha média fica acima dos sete). O adicional por dedicação exclusiva (quase 50% do salário) tem consequências para o docente: pelas resoluções vigentes na Ufes, o professor que ministrar menos de 16 horas de disciplinas precisa desempenhar atividades de pesquisa e extensão para integralizar a jornada. Nem todos fazem, mas aqueles que fazem receberão exatamente a mesma coisa no final do mês, revolucionando a vida na Terra ou realizando uma palestra para ninguém ver.

Isso nos leva à gestão acadêmica. É bem diferente oferecer apoio pedagógico a 10 mil estudantes e a 1500 ou 2000. A figura do pedagogo é extremamente distante do cotidiano do professor e a assistência estudantil é um setor absolutamente sobrecarregado — acumula as funções de realizar as políticas públicas das cotas sociais, auxílios e acompanhamento psicossocial do corpo discente. O coordenador de curso não tem poderes sobre as atividades dos docentes que atuam no seu curso, conseguindo (no máximo) trocar figurinhas em breves e raras reuniões dos colegiados. Os sistemas, laboratórios, monitorias e bibliotecas podem ficar (e normalmente ficam) aquém das exigências das diretrizes do MEC. Os avaliadores do Inep “conhecem” a realidade das instituições e ajudam o coordenador a brigar com a reitoria por melhorias, diferente do que fazem nas particulares onde exigem o que é necessário e ponto final (o cartão de crédito platinum surge do bolso do diretor…).

O Enade garoto propaganda

O CPC é uma realidade distante do cotidiano das federais e estaduais, a não ser nos casos onde o índice resulta na suspensão do processo seletivo temporariamente. O mesmo conceito de curso que recebe destaque nas propagandas das faculdades particulares para captar alunos pode ser derrubado por alunos das públicas que boicotam o exame nacional de desempenho dos estudantes de ensino superior (Enade) em protesto. Não discuto a importância de haver mecanismos de avaliação de desempenho dos cursos, embora a função do índice nos dois tipos de instituição seja muito diferente. Há docentes nas instituições públicas que sequer sabem o CPC de seus cursos. Nas particulares, mudanças no CPC podem definir a garantia de seu emprego no próximo ano.

A pesquisa e a extensão nas universidades públicas se comprimem nos restos da jornada do professor fora de sala de aula, sem nenhum tipo de remuneração adicional por parte da instituição; o mesmo pode ser dito das estratégias de compensação da falta de apoio pedagógico; da impossibilidade dos setores de comunicação e marketing auxiliarem tantas demandas distintas; da insuficiência e precarização da infraestrutura; da falta de coesão das equipes que atuam nos cursos (você pode ministrar aulas para 20 cursos diferentes e jamais ter contato direto com os coordenadores, especialmente se não causar problemas).

Há a pós-graduação stricto sensu, que é outro planeta do sistema. Em alguns programas privilegiados, o professor não coloca os pés na graduação há anos, substituído pelo estágio de docência de seus mestrandos e doutorandos; em outros, estar na pós significa mais uma camada de trabalho não remunerado. As especializações (lato sensu) pagas nas federais são uma estrela nova na galáxia, que podem criar oportunidades de melhor remuneração para quem conseguir implantar um negócio desses dentro do campus. A pós-graduação stricto sensu me atrai e está nos meus planos; a lato sensu paga é algo que ainda estou tentando entender.

Avaliando objetivamente, eu trabalhava 40 horas na iniciativa privada e recebia por cada uma delas. Em meados de 2016, estava trabalhando cerca de 60 horas, recebendo por 40 e provavelmente tirando do bolso para fazer as 20 horas adicionais funcionarem. Não sou herói: a regra do professor do magistério superior público é financiar sua atividade, da impressão das provas à estruturação do laboratório de pesquisa e extensão que não renderão nenhum centavo a mais (na verdade serão reais a menos) no fim do mês. No meu caso, acumular as funções de professor, coordenador de curso, orientador de monografias, coordenador de laboratório de pesquisa e extensão (o Loop), integrar comissões do aparato burocrático tornou-se impraticável em 40 horas.

Não basta dar aula, tem que ser gestor do ensino. Não basta ser pesquisador, tem que ser relações públicas, gestor de projetos, de recursos humanos e captador de financiamento dos laboratórios. Não basta preparar as disciplinas, tem que reinventar as condições didáticas para superar as deficiências infraestruturais. Ainda por cima tem que publicar, fazer extensão e ministrar excelentes aulas, sorrindo nas (poucas) matérias que a imprensa local destina aos projetos de sucesso. E eventualmente precisa ignorar a mesma imprensa local que reúne, no mesmo bolo, servidores que quase enlouquecem para dar conta desse cenário e outros que recebem para não fazer nada.

Essas são as minhas condições de trabalho no serviço público do magistério. Diria, sem hesitar, que se conseguisse fazer nas instituições particulares o que faço na Ufes, seria um popstar. Teria um super salário, regalias, estaria nas campanhas da instituição e tudo mais. Teria, seria e estaria, em hipótese, porque nada do que faço sobreviveria na iniciativa privada. Faço extensão de risco (design nas agroindústrias familiares?) e pesquiso fenômenos de longo prazo, iniciativas que não se transformam em novas matrículas ou retenção de alunos ao fim do ano.

Se por um lado a Ufes não está no topo do ranking das universidades mais importantes quanto à produção científica, por outro está à frente das particulares locais. A distância entre o que eu pesquiso e o que a sociedade espera, considerando o investimento do contribuinte, ainda é grande. O que precisa ficar claro é que o custo da redução dessa distância está sobre os ombros de cada docente e não da instituição. Aquele contribuinte precisa ser devidamente informado sobre a destinação dos recursos da educação para entender que a universidade pública está muito distante da vida dele em função de barreiras que não foram construídas pelos servidores da instituição (embora às vezes sejam perpetuadas por eles).

3. A avaliação do desempenho

Acredito que o discurso mainstream avalia o desempenho do professor das instituições públicas com base no estatuto do servidor público e não pelo exercício do magistério: todo mundo tem opiniões sobre a estabilidade, a remuneração, a flexibilidade da jornada e até sobre a aposentadoria; poucos se interessam, seja para valorizar ou depreciar, os resultados dos processos de ensino-aprendizagem , da produção científica ou da atividade extensionista (quando comparados aos das instituições privadas).

O tempo que invisto em meus orientandos de monografia ou bolsistas e voluntários do Loop é inviável financeiramente na iniciativa privada. Mesmo nas atividades de sala de aula há espaço para superar a caixinha que algumas instituições privadas estabelecem como prática de ensino — em 2016, levei 40 estudantes a São Paulo por cinco dias para visitar museus, exposições, empresas, a USP, andar de metrô e outras coisas com o ônibus custeado pela Ufes; para alguns, foi a primeira viagem para fora do ES. Como avaliar o impacto disso na formação dos futuros designers? Qual exame nacional ou indicador de desempenho de serviços públicos mede isso?

Pesquisa e extensão raramente figuram no imaginário do contribuinte como atividades cotidianas e necessárias nas universidades públicas, seja porque subsistem (ou inexistem) na iniciativa privada, seja porque a comunicação social dos resultados é extremamente limitada em função das deficiências que mencionei anteriormente.

A visão do assistencialismo e da prestação de serviços gratuitos, oriunda das instituições privadas, é dominante e ofusca as possibilidades das interações produtivas universidade-comunidade, universidade-empresas e até universidade-governos, tanto quanto à produção de conhecimento socialmente relevante, quanto aos resultados econômicos do que for produzido e aplicado. Por fim, como consequência dos pontos anteriores, não há apreço algum pelos sacrifícios realizados para se fazer mais daquilo que ninguém deseja ou valoriza. Descobri isso pessoalmente, a duras penas — os detalhes deixarei para as conversas com quem tiver interesse e lenços sobrando.

A avaliação enviesada (o que eu espero da universidade versus o que eu recebo dela) ganha corpo e respaldo na retórica das regalias, super salários e ineficiência. Conforme discuti no Incendiários: Universidade Pública, parte do ônus pela perpetuação desse viés é nosso. Nenhum contribuinte defenderá o que desconhece, que não participa de seu cotidiano e que, segundo as fontes da “verdade”, custa caro, é ineficiente e acomoda privilegiados que trabalham de costas para o que acontece para além dos muros.

Por mais que todas essas acusações sejam injustas ou infundadas, estão na pauta da bipolarização atual do país. Num contexto desses é impossível não repensar o futuro da própria carreira.

4. Back to basics

No artigo de José Pacheco (da Escola da Ponte) que mencionei rapidamente na abertura deste post [link], as autoridades portuguesas da época (2007) defendiam o abandono de estratégias pedagógicas da moda e reformismos, para o retorno ao básico. No entanto, Pacheco questiona suposições equivocadas sobre o que seria o básico, especialmente aquelas que defendem o retorno ao ensino puro de português e matemática como solução para o baixo desempenho escolar.

O que seria o básico no ensino superior?

A oposição máxima entre a meta de desempenho das instituições públicas e das privadas diz respeito à empregabilidade de seus egressos. De uns tempos para cá, as faculdades particulares vêm intensificando a comunicação de sua capacidade de colocar os graduandos no mercado de trabalho, em paralelo à divulgação dos bons resultados no Enade. Conseguir bons empregos após a formatura é um resultado desejável óbvio para qualquer profissional recém-formado. A questão é considerar o valor simbólico da oferta de diplomas como garantia da carteira assinada num país com 12,7 milhões de desempregados.

Qual é o básico da universidade pública, para o contribuinte? Acesso ao ensino superior para as pessoas aumentarem as chances de obterem melhor renda futura. A maioria dos pais brasileiros, que sequer tiveram acesso ao ensino médio, sonha com o diploma universitário como garantia de uma vida [economicamente] menos dura para os filhos. É uma função local, bottom-up, em prol do indivíduo que se qualifica e se diferencia da coletividade pelo acesso à formação profissional especializada.

A percepção da mudança esperada é microeconômica, encadeada no período da formação, com impactos na economia real do “agora”: os filhos, ao estudarem quatro ou cinco anos, devem ter mais oportunidades que os pais.

Qual é o básico da universidade pública, para a universidade? Missão, visão e valores da Ufes abordam a formação do cidadão, citando indiretamente ou implicitamente a preparação para o mercado de trabalho (“desenvolvimento regional…”) ou a melhoria das condições econômicas de seus ingressantes (“compromisso com a coletividade…” ou “integrada à sociedade…”). A UFRJ, em redação mais direta, fala em capacitar seus integrantes como forças transformadoras e indica a formação para o exercício de profissões de nível superior como o primeiro de seus objetivos específicos. A Unicamp, primeira no ranking das universidades brasileiras, também inclui formar profissionais capazes de constante aprendizado na missão de seu planejamento estratégico.

A expectativa de um futuro melhor para seus ingressantes, do ponto de vista financeiro, é desdobramento da atuação mais ampla das instituições: a disseminação do conhecimento de forma democrática e ética cria um ambiente propício à formação do cidadão-profissional que atuará no desenvolvimento sustentável do seu entorno e colherá os frutos deste desenvolvimento. É uma função global, top-down, em prol da coletividade que busca a redução das desigualdades pela difusão do conhecimento.

A percepção de mudança esperada é macroeconômica, da ordem das décadas, às vezes do século: a universidade pública atua para melhorar o ambiente institucional — político, econômico, jurídico, aprimorando as regras formais do sistema, da propriedade e dos contratos sociais.

Como conciliar expectativas de mudança tão distintas? Como comunicar às pessoas que tais funções são parte do mesmo processo de transformação social, cada um com dinâmica (temporal, política) própria? Como proteger e defender tal missão institucional num ambiente de descrédito e desmonte do serviço público? Oliver E. Williamson, de quem eu peguei emprestado os níveis de análise, ainda sugere que deveríamos considerar um nível abaixo do microeconômico, no qual poderíamos falar da economia comportamental e outras formas de funcionamento cognitivo: qual a função cognitiva da universidade em cada episódio de tomada de decisão do indivíduo matriculado?

A realidade de muitos estudantes é extremamente difícil, lutando para permanecer na universidade pública, tanto por deficiências acumuladas ao longo da formação inadequada no ensino básico (que muitas vezes de básico não teve nada), quanto pela materialização das contradições sociais em cada aula ou cada trabalho a ser elaborado, apresentado, entregue. Sem aumentar as chances reais de empregabilidade (e mobilidade social), a permanência é ameaçada e as expectativas podem ser frustradas.

Não proponho que o básico das universidades públicas seja apenas garantir o emprego futuro de seus estudantes. Ainda que haja grupos de professores que recusem essa responsabilidade ou partes dela (capacitar ou preparar para o mercado, interagir com empresas, resolver problemas ligados “ao capital”), há outros grupos que escolhem abrir buracos (às vezes avenidas) nos muros pela pesquisa e extensão. O básico das instituições de ensino superior deve ser o ensino, gratuito e de qualidade.

5. O básico é básico

Se você cursou ou está cursando uma universidade pública, pergunte-se quantas vezes encontrou professores com habilidades de ensino como aqueles que teve na educação básica. Professores que lhe ensinaram a ler e escrever, a matemática elementar, os rudimentos das ciências, os primeiros contatos com a História… Professores que, dependendo do contexto, davam conta de todas as disciplinas de quatro séries distintas no mesmo espaço; que administravam todas as atividades acadêmicas, das festas temáticas às visitas técnicas, da higiene pessoal ao desenvolvimento de hábitos alimentares saudáveis; e que muitas vezes eram autores de todos os recursos didáticos que utilizavam em sala de aula.

As diferenças enormes na estrutura e condições de trabalho nas escolas de um país tão desigual quanto o Brasil não são suficientes para apagar as contribuições desses professores da educação básica na formação de cada indivíduo que consegue chegar ao ensino superior. Do gosto pela leitura ao prazer por resolver problemas, aprendemos a estudar (e a aprender) a partir do planejamento que esses professores elaboraram e das estratégias que utilizaram para nos incentivar na direção certa. A situação inversa é verdadeira: lembramos bem daquele professor sem didática, que nos fez desistir ou odiar determinados conteúdos, e que cujas avaliações não faziam sentido e as correções muito menos. Eu tive poucos professores no ensino superior com as habilidades didáticas que experimentei na educação básica e muitos professores que me deixaram com saudades dos tempos de escola. No mestrado e doutorado o sistema tem outro básico, que abordei anteriormente.

Na graduação, embora as expectativas dos ingressantes sejam predominantemente relacionadas ao ensino, ofereci acima um panorama das demais atividades sob responsabilidade dos docentes — pesquisa, extensão, burocracia. O que ficou faltando mencionar, e que está diretamente vinculado ao que seria o básico no ensino superior, diz respeito à forma de ingresso do professor no serviço público e o que acontece na formação dele dali para frente.

O concurso público para seleção de docentes tem três etapas: prova de títulos, prova escrita e prova didática. Na primeira, avalia-se a formação, produção acadêmica, técnica e demais feitos do candidato até a data do concurso. Publicações em periódicos e anais de eventos, atividades de extensão e tempo de docência são contabilizados, bem como orientações e participações em bancas.

A prova escrita tem pontos sorteados e aborda o conteúdo programático do concurso, que teoricamente deveria ser o conteúdo das disciplinas que o candidato aprovado em primeiro lugar assumirá. Na maioria das vezes, após a posse, o professor assume as disciplinas que estiverem descobertas. Para docentes em estágio probatório (Lei 12.772/2012, Cap. VI), recusar disciplinas é praticamente impossível.

A terceira fase do concurso consiste na realização de aula com ponto sorteado também no programa do concurso, onde a banca avaliadora (a mesma que corrigiu a prova escrita e avaliou os títulos) analisa as habilidades didáticas dos candidatos.

Eventualmente há a avaliação do plano de trabalho dos candidatos, que consiste em intenções de atividades de ensino, pesquisa e extensão a serem desempenhadas caso aprovado. Na prática, trata-se de uma formalidade do concurso, pois dificilmente alguém que desconhece o curso, a estrutura da instituição, o perfil dos futuros colegas e o interesse dos estudantes consegue propor algo que seja integralmente exequível.

A parte que importa para a oferta do básico é a prova didática: neste momento, professores que podem ou não ter conhecimentos sobre andragogia ou didática do ensino superior avaliam o desempenho dos candidatos. Honestamente, este é o último momento formal de discussão sobre as habilidades didáticas dos professores no ensino superior com consequências reais. Desempenhos ruins (abaixo de 7,0) são desclassificados e as notas são somadas às etapas anteriores para se definir a colocação final do concurso.

A formalidade avaliativa, em função do tempo e da sorte (temática aleatoriamente indicada ao candidato), restringe-se às habilidades de oratória e gestão do tempo: planejar a distribuição do conteúdo de maneira que a aula tenha início, meio e fim no tempo estipulado, entregar o plano de aula antes de começar a falar, apresentar confiança na exposição e na utilização dos meios didáticos etc.

Obviamente essa etapa distingue os candidatos com alguma experiência de docência daqueles que saíram da pós-graduação sem ter colocado os pés em sala de aula. A questão é que pode não haver outro momento de avaliação e tampouco de apoio ao docente ao longo de sua carreira. Eu brinco que quando assumi na Ufes em julho de 2009, não ganhei sequer um abraço da instituição, quanto mais orientações pedagógicas. Os candidatos aprovados promovidos a professores entram no ensino superior e se viram, literalmente…

… E a conta chega para os alunos. Os conselhos de classe, formações continuadas, jornadas pedagógicas e todas as outras iniciativas de acompanhamento dos professores da educação básica não são enfeites. Por mais que sejam momentos repetitivos e, às vezes, pouco produtivos, permitem a discussão dos dilemas e compartilhamento de alternativas. Na minha realidade da Ufes, as reuniões do colegiado de professores são burocráticas, com pouca ou nenhuma discussão de questões pedagógicas para além de se reproduzir “o que funciona”. As reuniões definidas como pedagógicas resumem-se à apresentação do que cada um faz, sem discussão de alternativas, sem visões críticas sobre as práticas. De forma geral, o estudante é um problema — desmotivado, desinteressado — e a solução não é problema nosso. Semestre após semestre, discutimos o baixo desempenho do corpo discente como algo geracional, inevitável, que marca a diferença entre nós e eles. “Os alunos passam, nós ficamos”, dizem alguns colegas. Não poderia ser mais longe do básico.

Não me considerava um professor ruim. Meus alunos, na média, entregam bons trabalhos. Apesar dos muitos afazeres, dedico tempo razoável aos orientandos, costumo preparar bem o material de aula (a maior parte online, organizado desde o primeiro dia letivo) e gasto tempo razoável elaborando slides. Nos últimos 14 anos, acreditei ter mais sucessos que insucessos… Até que em julho de 2017, fiz o curso de Ensino de Habilidades de Estudo no Centro Paradigma (SP). Resolvi fazer o curso porque o título me pareceu incrível (é possível ensinar alguém a estudar?) e porque o Paradigma tem reputação respeitável na comunidade acadêmica da Psicologia brasileira.

Foram 12 horas de revelações sobre o que fazia meus professores da educação básica tão excepcionais. Foi um choque perceber que eu baseei minha dinâmica na punição (medo, pressão, ameaças) dos estudantes desde que coloquei os pés na sala de aula em 2001. Você acredita que faz o estudante chegar no horário porque faz chamadas cedo; que recebe os trabalhos no prazo porque tirará pontos dos atrasados; que incentivará a leitura dos textos por sortear aleatoriamente quem comentará seu conteúdo; que avaliará adequadamente ao elaborar provas difíceis repletas de “pegadinhas”. Eu não me considerava um professor ruim, mas reproduzia cada prática questionável que meus professores tiveram comigo, sem refletir criticamente sobre cada uma delas. Como diz um amigo pedagogo, as instituições estão repletas de professores que escolhem questões terríveis de concursos para suas provas, esquecendo que o objetivo do concurso é eliminar 995 candidatos e aprovar cinco, enquanto o da sala de aula é que todos aprendam e ninguém fique para trás.

Se esse insight foi emblemático para alguém com mestrado e doutorado em Psicologia, leitor de Vygotsky, Piaget e Paulo Freire, imagine o que significaria para professores das áreas de exatas e saúde, que se gabam de reprovar a maior parte da turma e se orgulham de ministrar “matérias impossíveis”.

Bem, na maioria das vezes não significa nada. Trabalhamos em instituições que parecem ter esquecido que não há aprendizagem sem ensino e que não é possível o professor ensinar sem o estudante aprender. Para mim, significou retornar ao básico, estudar questões pedagógicas como nunca estudei, discutir as práticas que repito cegamente e pensar novos caminhos de acordo com as demandas de cada turma, exatamente como meus professores da educação básica sempre fizeram. Significou abolir a punição das estratégias didáticas e assumir a minha parte da responsabilidade para que o ensino aconteça de forma planejada, consciente e científica (afinal, também estamos numa instituição de pesquisa).

Essa volta tem bases científicas sólidas na Análise Experimental do Comportamento, a partir do trabalho iniciado por B. F. Skinner e Fred S. Keller nos anos 1950–60, e mais recentemente com a Relational Frame Theory, que avança nas investigações sobre o comportamento simbólico iniciadas com o Verbal Behavior de Skinner. De julho de 2017 para cá, foram mais dois cursos de formação na área e o projeto de pós-doutorado aprovado no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Ufes.

O pós-doutorado, que embora seja o estágio mais elevado da minha formação acadêmica como docente, está totalmente dedicado a fazer o básico, o feijão com arroz, o trivial (que de trivial não tem nada) funcionar como deve.

Os estudantes aprendem sozinhos o tempo todo. O investimento deles e das famílias durante os anos do ensino superior precisam ter algum diferencial em relação ao autodidatismo, sob pena de condenarmos a presença dos professores no processo à mera figuração ou ao papel cada vez mais frequente de obstáculo à aprendizagem.

Estou em busca de menos tempo gasto com burocracia, com extensão paliativa para a formação descolada da realidade e com pesquisas apartadas do ensino. O foco é melhorar o ensino como estratégia de aperfeiçoar todo o resto. A revisão da literatura até o momento foi incrível, evidenciando a dura realidade de que o ensino que funciona reduz os encargos. A avaliação do processo precisa envolver o papel do professor e estabelecer parâmetros que contemplem diferentes ritmos e estilos de aprendizagem dos estudantes.

Em tempos de deep learning não faz sentido submeter o corpo discente a paradigmas fordistas de educação. A tecnologia pode e deve participar do processo, mas sem achismos ou deslumbramentos. As condições estruturais de trabalho que mencionei devem piorar com o tempo, de forma que a única maneira de manter a gratuidade e qualidade é aumentar a eficiência. Precisamos fazer mais e melhor com os privilegiados que acessam o ensino superior, para quem sabe reduzir a distância entre as expectativas da sociedade e as missões institucionais. Aumentar o número de vagas na situação atual será suicídio, a menos que possamos construir formas de ampliar o acesso sem perder a capacidade de participar ativamente da educação dos graduandos.

Mais tempo produtivo de ensino do professor com cada estudante e o desenvolvimento de suas habilidades de aprender, não menos. Este é o básico.

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