Teoria e prática no ensino de Design: de onde viemos, onde estamos e para onde vamos? (parte I)
Tive formação privilegiada como designer (1998–2003) na Universidade Federal do Espírito Santo — Ufes. Sou graduado, à moda antiga, como Bacharel em Desenho Industrial, com Habilitação em Programação Visual. Mesmo na virada do século XX, a instituição em que estudei ecoava heranças da Bauhaus e Escola (HfG) de Ulm; tinha na bibliografia básica obras e autores do velho mundo; adotava como referências, principalmente, designers formados nas escolas emblemáticas (tais como Ulm) e nas representantes daquele “legado” em terras brasileiras (IAC, ESDI, FAU etc.).
Minha graduação aconteceu no Centro de Artes da Ufes, e esta localização teve consequências importantes. A maioria dos professores que ministraram aulas para as primeiras turmas eram artistas. Na época, essas formações eram conflitantes para o corpo discente, que esperava ter mais contato com profissionais que atuavam na “nossa área”.
As reclamações eram frequentes: design não é arte, arte não tem função, artista não entende o que fazemos e outras besteiras.
Hoje, lembro a diversidade na formação que tivemos com gratidão e alívio, pois estou certo de que não fomos condimentados apenas com o tempero europeu e limitados ao cardápio do design stricto sensu. Tivemos exemplos e oportunidades de conhecer outras abordagens e interesses, além da regalia de ter aulas com expoentes da arte capixaba.
O ponto alto da minha formação, sem dúvidas, foi o embate entre duas concepções de design. Nunca imaginei que aquela oposição se tornaria o núcleo central da minha própria carreira como profissional, depois como docente e, mais recentemente, como pesquisador. O embate foi travado por duas formas de pensar três questões essenciais:
- A prática do design;
- As atividades do designer nesta prática;
- A condição do usuário e seus interlocutores no processo.
Lembro que os professores que representavam as duas formas de pensar tinham uma relação afetuosa, embora provavelmente discordassem sobre como resolver as três questões que citei. Do mesmo modo que sou grato aos professores artistas que tive, os designers Ronaldo Barbosa e Heliana Pacheco contribuíram, cada um à sua maneira, ao balanço entre teoria e prática, protagonismo e participação, objetividade e subjetividade na nossa formação na primeira turma do Curso de Design da Ufes.
As oposições não eram simples e muitas vezes houve inversões. Não se trata de situar as estratégias daqueles professores em lados opostos, empobrecendo o debate, mas de compreender como a formação deles articulava a forma de pensar as três questões essenciais.
A falta de conhecimento sobre essas tensões do design são, na minha opinião, fatores que contribuíram para a concepção hegemônica de design vigente no mercado de trabalho capixaba e, quem sabe, brasileiro. O designer médio, tanto trabalhador assalariado quanto autônomo, faz malabarismos para se adaptar às ondas de modismos cada vez mais curtas. Para sobreviver no mercado, mantendo seu emprego ou clientes, adotou (às vezes com entusiasmo) o discurso do design thinking, da experiência do usuário, da cocriação e de muitos outros rótulos que se tornaram sinônimos de design.
Empregadores e contratantes estão ávidos por design thinkers, UX designers e várias siglas bacanas que significam pouco em termos de remuneração e de posicionamento crítico acerca do trabalho a ser desenvolvido. Mencionamos parte deste problema no segundo episódio do podcast do Loop/Ufes e tentarei levar os argumentos em outra direção nesta sequência de posts.
1) A prática do design
Desde as escolas pioneiras, a prática do design está diretamente implicada nas tensões culturais. Seja pela ampliação do acesso a itens de consumo, habitação, educação ou informação, o designer é um dos profissionais encarregados da concepção e especificação de artefatos e sistemas de signos, sempre articulando o “social” (valores, crenças, modismos, demandas) e o “produtivo” (máquinas, processos, insumos, mão de obra, financiamento). Minha primeira definição de design em Design sem Designer (p.20) resume o argumento:
Design é uma síntese de variáveis contextuais por meio de processos analíticos.
Não há nada novo nesta definição. Os processos de design operam por aberturas e fechamentos, gerações e seleções. O funil, modelos fuzzy e o diamante duplo são estereótipos das alternâncias entre análises e sínteses. É o ser humano que resolve problemas dessa forma, não apenas o designer.
O embate na nossa formação na Ufes começou justamente no entendimento sobre como se dá a abertura e quais são os critérios de fechamento. A opção pela objetividade valoriza critérios técnicos e científicos para justificar seleções: princípios da Psicologia da Gestalt; teoria da cor, da informação e da comunicação; semiótica (no nosso caso, Peirceana); ergonomia, usabilidade e engenharia cognitiva. Não por acaso, parte fundamental do legado das escolas europeias consiste na estruturação da grade curricular de maneira a incluir e articular essas disciplinas.
Para completar os contornos da prática, tivemos a presença constante da vida e trabalho de designers exemplares (além do próprio Ronaldo): Aloísio Magalhães, Alexandre Wollner, Karl Heinz Bergmiller, Max Bill, Otl Aicher, Cauduro e Martino, os “diferentes” Jan Tschichold… Cabe ressaltar que o grupo não era homogêneo, pois estes designers atuaram em contextos diferentes e empregaram estratégias de análise e síntese distintas.
Mesmo assim, os designers listados contribuíram para conformar os processos analíticos por força da objetividade, seja no polo social da articulação, seja no diálogo com demandas profissionais e possibilidades produtivas. Buscaram linguagens universais e redução-simplificação-programação da forma como tática para enfrentar a entropia; elaboraram grandes sistemas de identidade corporativa e editoriais; projetos governamentais e intervenções urbanas; modernizaram a implantação dos sistemas em larga escala pela adoção de tecnologias, processos e insumos industriais.
Os desdobramentos mais importantes daquela conformação foram a natureza e temas dos projetos desenvolvidos em sala de aula. Identidades de multinacionais reais ou sistemas de sinalização urbana a serem efetivamente implantados não são facilmente transformados em atividades didáticas. Se as parcerias necessárias para sua realização fossem viabilizadas (o que já seria um feito e tanto), a complexidade da articulação entre o “social” e o “produtivo” nesses projetos não caberia no semestre letivo.
Sendo assim, o encontro dos estereótipos citados da prática com a realidade da sala de aula resultou na formação marcada por projetos fictícios, inclusive nos casos em que a instituição escolhida não era grande e as variáveis não eram complexas. A sacola de pão da padaria do bairro e a comunicação visual de ONGs locais foram igualmente imaginadas.
Nos momentos de abertura e análise, considerávamos padarias e ONGs reais, eventualmente conversando com as pessoas afetadas. No entanto, nos momentos de fechamento e síntese, a validação das hipóteses de projeto seguia orientada, no melhor cenário, por critérios técnicos e científicos. Boa parte das vezes, a validação foi a orientação do professor, perpetuando o modelo das escolhas de profissionais exemplares como parâmetro. Não estou sugerindo que o modelo é ruim. Foi o modelo que tivemos, fui formado parcialmente por ele e parece que continua vigente.
É óbvio que não posso afirmar que a situação que descrevi aconteceu ou ainda acontece nos demais cursos de Design. Contudo, acredito que todo estudante de design, brasileiro ou não, experimentou este tipo de estratégia didática em algum momento. Parte importante da prática do designer é aprendida por meio de projetos controlados com temas fictícios, em que as variáveis e limitações produtivas são estipuladas pelo professor com o intuito de explorar certas dimensões do problema — por exemplo, a aplicação dos critérios técnicos e científicos de seleção objetiva de hipóteses de projeto.
Mas nem sempre é assim.
A alternativa que experimentamos, ainda que de maneira muito pontual, consiste na crítica ao cenário que descrevi. O “design social”, então praticado na Ufes, surgiu na PUC-Rio nos anos 1980. As bases da abordagem remetem a Gui Bonsiepe, Victor Papanek, Christopher Alexander e a iniciativas de design participativo na Europa pós Segunda Guerra.
Heliana Pacheco integrou o grupo da PUC-Rio que praticou o método nas disciplinas de Projeto naquela instituição. Ao assumir o cargo de professora no início do Curso de Design da Ufes (1998), introduziu o método na disciplina de Projeto I, ofertada no primeiro período. Em linhas gerais, os calouros são orientados a escolher grupos sociais fora dos muros da universidade e projetar com eles, em vez de para eles.
O processo de abertura e análise incentiva a convivência direta com o grupo, o conhecimento de seu cotidiano, necessidades, expectativas e, principalmente, das práticas projetuais que o grupo já realiza. O processo de fechamento e síntese é compartilhado com o grupo, pautado pela compreensão da realidade do outro. Critérios técnicos e científicos são relevantes, desde que possam ser discutidos e problematizados pelo grupo, que precisa se apropriar daquele conhecimento. Quando o estudante de design deixa o local de projeto, o grupo deve ter conquistado a autonomia para continuar o desenvolvimento do que foi construído ou aplicar a experiência a novas situações.
Adeptos de métodos e técnicas contemporâneas de cocriação podem ficar surpresos ao saber que abordagens participativas de projeto são praticadas no Brasil há, no mínimo, 40 anos. Antes do aparecimento de livros sobre design thinking em meados dos anos 2000, a Ufes e outras instituições brasileiras de ensino superior envolviam o usuário diretamente no ensino, pesquisa e extensão em design. O Google Acadêmico encontra mais de 200 referências de “design participativo” em português entre 1990 e 2009, ano de publicação do célebre livro de Tim Brown. Esta falta de conhecimento histórico acerca do próprio campo será retomada nos próximos posts.
A prática do design social introduz mudanças radicais. A primeira consiste no deslocamento do designer de protagonista para mediador do processo, mesmo que isso não ocorra em todos os casos. A relação dos grupos com estudantes universitários não é simples: às vezes são recebidos como parte da elite intelectual que goza de prestígio e consegue ser ouvida; em outras são tratados como mão de obra barata, pouco especializada e que não sabe bem o que está fazendo.
A situação ideal não está em nenhum dos extremos, pois o design social opera na reciprocidade construída entre designers e usuários, quando ambos se percebem como partes indispensáveis do que será projetado em colaboração. Assume-se a subjetividade e individualidade dos atores como parte inalienável do percurso, conforme sugerem dissertações mestrado de Rita Couto e Heliana Pacheco elaboradas nos anos 1990. Apesar da proximidade epistemológica, não há citações a Paulo Freire nesses trabalhos.
A segunda mudança radical introduz um novo problema, que ao mesmo tempo resolve dificuldades de escala. Por um lado, o design social acontece em situações reais, compostas por pessoas a serem conhecidas e questões concretas a serem enfrentadas, sem controles de variáveis e com limitações eventualmente intransponíveis. Por outro, este conhecimento aprofundado sobre a realidade alheia não é facilmente construído em situações onde os atores têm pouco poder decisório (p.ex. grupos muito hierarquizados) ou capacidade de ação limitada por recursos financeiros, materiais etc.
É importante ressaltar que o design social também encontra dificuldades para ser aplicado a empresas comuns, operando no capitalismo. Projetos em ONGs, escolas, associações comunitárias e similares eram mais frequentes. Nem todo empresário tem tempo sobrando e está disposto a conviver continuamente com designers para conseguir o que negócio necessita. O modelo dos profissionais exemplares parece treinar melhor o estudante a adaptar métodos e técnicas europeias à realidade local, uma vez que muitas empresas daqui reproduzem padrões estéticos, organizacionais e produtivos igualmente originados no norte global — são relações contratuais, não convivenciais.
Por fim, a despeito da postura explicitamente política dos autores que pensaram as bases do design social, nem sempre a prática dos estudantes e professores foi acompanhada de reflexões críticas necessárias. A disciplina de Projeto I acontecia no primeiro período, quando o calouro era exposto a múltiplas fontes de saberes que o ajudariam a desenvolver gradualmente senso crítico sobre sua prática. Muitas contradições que mencionei, como a falta de interesse do interlocutor ou sensação de ser mão de obra barata, foram experimentadas na carne, sem filtros e preparação adequada.
Além das decepções e dificuldades, o estudante quer ser aprovado na disciplina. Há o segundo sistema, universitário, atuando sobre o primeiro, do design em parceria no mundo real. A prática do designer que projeta junto com o usuário em situações concretas, mediada pela orientação do professor, impacta a média final e coeficiente de rendimento. Na época, essas tensões não foram agradáveis e houve pouca discussão com os alunos sobre a importância do que estava em jogo.
As substituições de professor por cliente ou chefe, a aprovação na disciplina por aprovação do trabalho e o coeficiente de rendimento por pagamento ou salário no trecho acima evidenciam o potencial daquela experiência para a formação do futuro designer. O mundo é o mesmo, as relações sociais, trabalhistas e de poder não são suprimidas por ocorrerem entre estudantes, usuários e seus interlocutores.
A disciplina de Projeto I teria sido oportunidade ímpar para discutir o mercado de trabalho que almejávamos; para debater as dimensões psicossociais da atividade do designer, inclusive suas consequências econômicas e políticas; para conhecer formalmente métodos e técnicas de pesquisa úteis na investigação e compreensão da realidade do outro. Aprendíamos “fazendo”, por osmose.
Projetos fictícios criados e orientados por professores podem proporcionar simulações daquelas relações, mesmo que atenuadas. A experiência do docente aponta dificuldades que seriam enfrentadas em projetos reais, seja por meio da ilustração de casos pessoais (como Ronaldo Barbosa fazia muito bem), seja pelo estudo de projetos consagrados na história do design. Ainda na ficção, a validação pelo docente não está livre de contradições: o aluno, futuro profissional, busca agradar o professor cuja reputação é respeitada no mercado, que tem conexões e poderá abrir portas.
A busca cega pela validação do professor, como critério de sucesso da disciplina, poderia resultar em escolhas discentes inadequadas aos usuários fictícios. Dilemas semelhantes existem na busca por validação acrítica dos pares, da chefia ou de quem paga contratos e salários, e isso precisa ser discutido na formação profissional.
As duas formas de pensar a prática do design são, portanto, complementares. O designer crítico, que reflete sobre as contradições de sua atividade projetual, não é formado apenas na ficção controlada nem na dureza do mundo real. As tensões que emergem da oferta do trabalho do designer no capitalismo podem ser apresentadas de diversas maneiras, desde que estejam na espinha dorsal da formação. Participação, envolvimento e cocriação não são processos neutros e despolitizados, como também não são respostas para todos os problemas do planeta.
Há momentos para análises e sínteses definidas por hierarquias, salários, coeficientes e imposição de escolhas técnicas; e momentos para horizontalidade, colaboração e fortalecimento de autonomias. Há espaços para o designer invisível, que toma decisões fundadas na objetividade, e para o designer visível, que intencionalmente se faz presente no que foi projetado. Há necessidade do designer autor, que defende e legitima escolhas por meio de sua reputação (nem sempre conquistada com base em resultados objetivos), como também precisamos do designer mediador, que cria condições para que o outro faça as escolhas e assuma a autoria do projeto.
A prática do design acontece “entre”.
…
A seguir
Duas formas de pensar as atividades do designer nesta prática (parte II) e a condição do usuário e seus interlocutores no processo (parte III).