Oitentando
Aniversário é mato, basta estar vivo para ganhar mais um ano de vida. Tive épocas bem festeiras e momentos de não curtir celebrações. Independente do humor, em 2019 completei 40 ciclos nesta terra.
Nasci no dia de finados (02/11) e a família (católica) decidiu me registrar no dia de todos os santos (01). Diz a lenda que seria triste para aquele menino fazer festa em dia de visitar cemitério. Bem, nunca usamos o dia para isso, e o efeito prático foi a súmula vinculante que integrou jurisprudências metafísicas e consuetudinárias, garantindo meu direito de comemorar dois dias todos anos.
O que posso dizer sobre os 80 aniversários?
Tive todas as oportunidades possíveis e impossíveis na vida, mais do que mereci e certamente muito mais do que esperava: família, melhores amigos, ótima educação, saúde física, mental e espiritual acima da média.
Pude escolher, a cada momento da vida, a melhor opção de estudo, trabalho e carreira. Foi e continua sendo um privilégio descomunal.
Fiz a migração (sem traumas) entre duas carreiras — do profissional-liberal-autônomo de 20 anos para o professor-pesquisador de 40. Aprendi, com muita dificuldade, que a vida não é só trabalhar.
Na academia, mantive os pés fincados na realidade, seja via extensionismo, seja pelo diálogo permanente com o mercado dentro e fora de sala de aula. Em retrospectiva, posso afirmar que tenho orgulho do que conquistei na carreira acadêmica.
Entretanto, a principal conquista da maturidade foi identitária. Avancei do marxismo superficial que me atraiu aos 20 e poucos anos para entender que o núcleo do meu incômodo com o mundo é o racismo e toda desigualdade que deriva dele. Demorei uns 30 anos para me entender negro, para corrigir prontamente as pessoas que diziam que eu "nem sou tão negro assim" e para me reconhecer como a única pessoa negra na maior parte dessa sorte toda que descrevi. Em muitas situações, incluindo meu espaço de trabalho, continuo sendo o único.
Demorei os mesmos 30 anos para descobrir meu apreço pelos povos originários, para conhecer a América Latina de perto e entender o que é ter a mente e corpo colonizados. É aquele negócio: os imigrantes italianos, alemães e portugueses montam suas árvores genealógicas, tentam obter cidadania, viajam até as regiões de origem de suas famílias, fazem festas do imigrante de nacionalidade X. Eu só posso fazer isso de forma indireta: 1) exame de DNA para saber de qual parte do continente africano meus antepassados foram abduzidos; 2) estudo da história daquele continente antes, durante e depois do tráfico de pessoas para a América.
Conhecer a África pessoalmente está nos meus planos e, enquanto isso, comecei a estudar e preencher as lacunas sobre as origens da minha própria vida. Fazer carreira acadêmica na Psicologia ajudou muito, já que o Design é mais parte do sistema do que da crítica. As bases epistemológicas da área ainda são importadas do norte global, os heróis ainda são europeus ou norte-americanos, as escolas emblemáticas ainda são alemãs. Nada mais distante de tudo que acredito e pratico.
O que ainda está faltando?
O serviço público, especialmente no magistério superior, tem missão diferente do restante da burocracia estatal. Sigo a proposta de Darcy Ribeiro, que pensava as universidades como motores da transformação social do país. Fazemos muito e ainda não basta.
Há multidões de jovens sem oportunidades, sem horizontes e que não tiveram todos os privilégios que eu tive. Eles perceberam muito mais cedo que eu (na mente e principalmente no corpo) o peso do racismo e da desigualdade que movem este país.
Há milhares de adultos e idosos que poderiam participar ativamente da vida universitária, e não estou falando apenas de EJA, de universidades da melhor idade e grupos de convivência. Estou me referindo à universidade como parte ativa da comunidade (capixaba, brasileira, global).
Nos primeiros 10 anos de Ufes (2009–2019), me dediquei ao ensino, pesquisa e extensão numa razão aproximada de 50/15/35. Nos próximos anos, dividirei os esforços em partes iguais, buscando desempenhar a função social da universidade para aqueles que não têm matrícula. É o que aprendi estudando a Reforma Universitária de Córdoba e sigo aprendendo ao conhecer iniciativas como a Universidade da Correria, o IOS e perifaCode.
Próximos passos
Pesquisa: Se 2019 foi um dos anos mais fortes da minha produção científica, 2020 fechará o primeiro ciclo dos projetos de iniciação científica do Loop. Em breve lançarei mais um número do Incendiários [1, 2] e, se o deus dos revisores ajudar, logo logo teremos dois artigos sobre UX em periódicos científicos nacionais — um teórico e outro empírico. Há outros dois estudos em Psicologia encaminhados, que devem ser submetidos ao longo do ano que vem.
Extensão: Testaremos a versão urbana da Imersão em Design e retomaremos as oficinas de letramento digital iniciadas em 2013 (veja o artigo e um dos materiais). Manteremos os eventos noturnos na Ufes sobre as áreas de interesse do Loop e, oxalá, conseguiremos envolver mais a comunidade.
Ensino: Tentaremos implantar projetos de apoio e acolhimento ao corpo discente do Curso de Design, esperando atingir resultados positivos dentro e fora de sala de aula (perto das experiências que conheci em outros países, estamos muito aquém do necessário). Implantarei Fred, meu sistema personalizado de ensino desenvolvido no pós-doutorado, cujos efeito mais importante será abrir todas as minhas disciplinas para qualquer pessoa conectada à Internet. Concluirei a transição epistemológica dos meus conteúdos programáticos para autores, métodos e técnicas orientadas ao sul global, que pensam o enfrentamento das desigualdades e desafios do país a partir de nós mesmos.
E que venham mais 80 aniversários!