“Beep-beep”

O breque, o pesado e o vagaroso em tempos de sprint, lean e agile

Hugo Cristo

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Os males do culto tóxico à produtividade são amplamente conhecidos e ainda assim relativizados (dicas de leitura ao longo do post). Em qualquer nicho profissional é possível observar a repetição dos mantras da cultura do colapso:

  • Exercite níveis desumanos de superação;
  • Pratique privação sistemática de sono e abandone o ócio;
  • Experimente e defenda condições de trabalho desfavoráveis para demonstrar resiliência;
  • Transmita a saga ao vivo nos stories ou faça relatos inflamados e orgulhosos no LinkedIn.

A cultura do colapso rende boas risadas de suas buzzwords e recebe críticas inteligentes, mas no final das contas o moedor de gente segue atraindo novas almas para o evangelho destrutivo. O problema é que muitos novatos querem uma chance para ingressar no sistema, e nem sempre podem (ou conseguem) refletir criticamente sobre as "oportunidades de ouro" — carinhosamente conhecidas como vagas arrombadas. Com milhões de desempregados no país e a recessão resistente, o desespero por alternativas abre espaço para ofertas de trabalho bem menos honestas.

Os memes do absurdo não são apenas posts virais e acontecem perto de nós. Recentemente, li num grupo de WhastApp o relato de um designer que estava

há 24h sem dormir rs
criando uma solução para a área de saúde

Minha vontade foi perguntar se a solução o ajudaria a ter uma noite de sono adequada, mas duvido que ele estivesse preocupado. Outras pessoas no grupo reforçaram o comportamento, mantendo a cultura do colapso a todo vapor.

Não tenho nada contra quem quer se estourar de tanto trabalhar. A situação precária da saúde física e mental dos profissionais da área de tecnologia não é novidade. O que me intriga é transformar parte das soluções (alguns querem se estourar) na única solução (todos devem se estourar).

Por todo lugar, encontramos técnicas, métodos e abordagens da agilidade (respostas rápidas às mudanças), dos processos "enxutos" e do arranque (rumo à solução). Por duas vezes consecutivas, desenvolvedores que palestraram para meus alunos no Curso de Design da Ufes enfatizaram que o mercado exige entregas rápidas, mesmo que isso signifique pouca ou nenhuma compreensão dos processo subjacentes (p.ex., ensinar CSS bottom-up ou jogar os alunos novatos direto no Bootstrap?). Para professores como eu, este é um ótimo debate para realizar com alunos não menos ansiosos sobre o futuro.

Eu entendo aqueles argumentos e sei que são falas integradas a fenômenos anteriores e mais amplos. Uma parte deles introduziu mudanças importantes para a competitividade das empresas, enquanto a outra parte infectou relações de trabalho e o imaginário do que é ser produtivo. Esse efeito duplo parece inevitável, considerando a crise do capitalismo mundial.

Por sorte ou azar, o conjunto dessas e outras abordagens orienta aquele designer pressionado a funcionar 24h sem dormir, quem sabe praticando o melhor em agile, lean, sprints, design thinking, cocriação e o que mais você conseguir lembrar (entre outras coisas, a privação do sono afeta a memória).

O hackaton pode ser o parque de diversões do colapso: indivíduos se fecham em um evento durante 2–3 dias para colocar algo novo no mundo. Isso inclui pensar o problema, pesquisar pessoas potencialmente impactadas, prototipar, aprender rápido, errar cedo, competir, perder ou vencer. É um microcosmo do universo em que muitas empresas e empreendimentos existem.

Da mesma forma, entendo a iniciativa e reconheço sua potência em vários contextos que precisam de indução — causas sociais, transparência e melhoria da gestão pública, problemas muito específicos e de pouca visibilidade etc.

A questão é que nem tudo pode ser resolvido em hackatons. Há problemas que requerem meses ou décadas de amadurecimento, com intervalos bem mais ampliados entre entregas que uma semana. Existem tarefas que são intensivas em recursos (humanos, materiais e de tempo) e nem por isso devem ser abandonadas. As crises recentes enfrentadas por áreas científicas como a Psicologia surgiram, em parte, da pressão crescente por resultados de pesquisa relevantes, significativos e frequentes.

O vício em listas ("dez coisas que você precisa saber sobre X") ou textos "para quem tem pressa" são indícios dos mesmos mecanismos do colapso. Precisamos defender a utilidade dos fatos que estão na lanterna dos rankings, da mesma forma que é urgente lembrar que certos conhecimentos não se aprendem com pressa. Às vezes é necessário deixar a leitura "decantar", retomar as passagens, consultar as notas de rodapé e checar as referências. Para fazer coisas novas, você pode precisar ler os Elementos de Euclides (~600 páginas) tanto quanto o famoso guia que conseguiu compactar o essencial sobre machine learning em 160 páginas. O segundo até pode ser lido (às pressas) no hackaton, já o primeiro…

Mesmo na comunidade científica há recomendações tácitas para citarmos preferencialmente trabalhos recentes (~5 anos), como se os achados em todas as áreas tivessem a mesma velocidade de maturação. Ao mesmo tempo, as áreas de design interação e UX padecem por perpetuar cânones criados nos anos 1990, talvez por não haver tempo para repensar o assunto. Buzzwords vivem dessa superficialidade: aproveitam a ausência de reflexão crítica enquanto for possível, até que a fila do ranking desça outro degrau.

Não estou [apenas] defendendo rupturas nas engrenagens do moedor. A recente popularização de mindfulness, o aumento da busca por espiritualidade, de estilos de vida e de alimentação alternativos, inclusive nos espaços de trabalho, podem indicar que o sistema demandou rotas de fuga para retardar o colapso que ele mesmo alimenta. Morde e assopra, sufoca e bombeia ar.

No domingo, pouco antes das 23h, o designer reapareceu:

Galera que experiência FODA!
Doido para compartilhar esse Feedback de uma das coisas mais doidas que ja fiz na vida 48h sem dormir, criando uma solução do ramo da saúde

E eu torcendo para ele ter caído no sono.

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