Milhões em (falta de) evidências
Texto originalmente publicado no meu blog em 12/06/2020.
Estamos presenciando a migração para o ensino remoto nas universidades federais. Este processo segue a todo vapor e tem a difícil missão de oferecer alternativas ao ensino presencial suspenso pela pandemia de Covid-19.
Este texto apresenta minhas reflexões, dúvidas e crises por não concordar com as alternativas colocadas. Tampouco tenho respostas, apenas a certeza de que sabemos muito pouco e que precisamos fundamentar cientificamente as escolhas em curso.
1. O ensino remoto de emergência
Os custos da tecnologia mais popular para viabilizar o ensino remoto são elevados: preço promocional para contratações institucionais de US$ 24 (~R$ 120 em 12/06/2020) por ano por professor/técnico e gratuito para estudantes. O preço normal são US$ 48 (~R$ 240) para cada professor, técnico e estudante por ano. No caso da Ufes e sem a promoção vigente, os custos seriam:
- 20.467 estudantes: ~R$2.456.040 por ano;
- 1928 técnicos: ~R$231.360 por ano;
- 1780 professores: ~R$ 213.600 por ano.
Seriam praticamente R$ 3 milhões anuais investidos em tecnologias para viabilizar o ensino remoto durante a pandemia. Devemos comemorar a possibilidade de instituições pequenas como a nossa poderem realizar tal investimento, considerando a escassez de recursos dos últimos anos. É possível encontrar vídeos de instituições que estão utilizando os mesmos serviços na pandemia (p.ex. UFMS, UFCE). Deve haver outras, como a Ufes, estudando a contratação.
Nota: Se houver a possibilidade de usar qualquer serviço pago de forma gratuita (o que seria ótimo para o fornecedor, lembrando o tamanho da base), eu manterei todos os questionamentos dos tópicos a seguir.
Atualização em 23/07/2020: A Ufes divulgou que a adoção do GSuite é resultado de convênio com a RNP, sem custos. Segue o desafio de pensar o ensino remoto para além das plataformas.
2. A promessa
Os evangelistas estão em ação: são inúmeras lives e tutoriais demonstrando recursos e ajudando professores de vários níveis de ensino a prepararem suas disciplinas utilizando as tecnologias. É, ou promete ser, a bala de prata.
A pergunta mais importante diz respeito à qualidade deste investimento, seja financeiro, de tempo ou esforços para produzir e publicar todas as disciplinas. Há alternativas livres, gratuitas e de código aberto, em uso na Ufes e demais universidades. Eu lido com o Moodle há praticamente 11 anos, desde que ingressei na Ufes como professor efetivo. Comecei (2009–2011) como um dos coordenadores do LDI, responsável por produzir material para os cursos a distância da Ufes.
Antes de a Ufes oferecer Moodle para todos os professores do ensino presencial (“AVA”), eu utilizei minha própria instalação no servidor deste site. Adotei o Moodle durante três anos como apoio de três a quatro disciplinas presenciais simultâneas (2010–2012). Utilizei alternativas diversas entre 2013–2017 e desde 2019 adoto o modelo que expliquei no post A educação na piscina (Medium).
O Moodle também tem custos de manutenção, embora muito distantes dos milhões acima. Professores e estudantes, de um jeito ou de outro, estão acostumados ao ambiente e sabem que ele existe. Há muitos problemas de usabilidade, tarefas de gestão trabalhosas, a interface não é das mais atraentes e alguns recursos parecem datados — as gerações atuais de alunos preferem interações por mensagens instantâneas a fóruns e notificações por e-mail. Nesse sentido, concordo que os recursos da nova alternativa sejam melhores e mais atuais.
Ainda assim, defendo que os recursos não são e nunca foram barreiras para a adoção do Moodle.
O que falta à pregação dos evangelistas são evidências, mesmo que estejam meramente disseminando as tecnologias que dominam. Pode-se argumentar que não há estudos que explicitem os benefícios dos serviços gratuitos ou cobrados em dólar porque a pandemia demandou urgência nas escolhas.
Este argumento não se sustenta.
Os usos explodiram durante a pandemia, porém essas tecnologias foram desenvolvidas antes. Mesmo com os aprimoramentos realizados como consequência da escalada da demanda, o modelo de funcionamento desses ambientes não é novo. Os estudos recentes existem, tanto sobre Moodle quanto sobre as soluções que integram o GSuite.
Precisamos discutir e aplicar os resultados de estudos comparativos, que avaliaram o desempenho das opções em contextos educacionais específicos. A escolha deve ser baseada em evidências, não em modismos.
3. Exemplo
O professor X da área Y ministrará o conteúdo Z da disciplina W para alunos de perfil K. Como as tecnologias disponíveis afetam aquela situação de ensino e aprendizagem? O que se perde e o que se ganha com a adoção dos recursos A, B ou C, considerando a situação ideal de ensino e aprendizagem do conteúdo Z (que pode nem ser em sala de aula)?
As dificuldades de migração para o ensino remoto não se resumem a publicar PDFs, produzir e editar vídeos e criar grupos em aplicativos de mensagens. Vídeos e lives, por exemplo, são atuais e parecem boas estratégias. Antes de pular no barco dos YouTubers, precisamos:
- Entender se e como o conteúdo Z pode ser apresentado em vídeo para o estudante de perfil K. Isto é anterior à oferta de plataformas que hospedem o vídeo ou transmitam a aula.
- Compreender a linguagem mais adequada à exposição de Z em vídeo. Locução sobre slides? Animação? Professor falando e rabiscando lousa virtual? Bate-papo sobre o assunto (uma live de perguntas e respostas)?
- Investigar que diferença cada linguagem citada faz para a exposição de Z. Quais delas são viáveis para o professor X, assumindo conhecimentos das ferramentas de edição e disponibilidade de equipamentos em casa (câmera, microfone, espaço, silêncio etc.)? Qual o impacto da precariedade ou qualidade dos equipamentos na produção, distribuição, utilização e reutilização (EAD bem-feita implica reuso) do conteúdo? Qual o grau de acessibilidade de cada linguagem para o estudante de perfil K? Quais são as práticas da área Y no uso de vídeos para conteúdos sobre Z com a linguagem escolhida?
- Decidir quando utilizar o vídeo em conjunto com outros recursos e como avaliar seus efeitos sobre a aprendizagem. É complemento? É estímulo principal? A avaliação é posterior, anterior-posterior ou durante? O vídeo contribuiu para memorização ou compreensão do conteúdo, ou ainda, como avaliar retenção versus transferência usando vídeos?
- Saber quais seriam as alternativas de recursos didáticos, caso vídeos não sejam possíveis, viáveis ou adequados para o estudante de perfil K, aprendendo o conteúdo Z, na disciplina W, do professor X da área Y.
4. Aprender com o passado
Estas e outras perguntas podem ser feitas para todos os recursos disponíveis nas soluções gratuitas e pagas. A adoção frustrada de tecnologias educacionais pela tecnologia em si é filme conhecido no Brasil, com muitas refilmagens sem sucesso durante o século XX — máquinas de ensinar (~1960s), ensino programado (1960–70s), televisão educativa (1960+), computadores na sala de aula (1980s), internet na sala de aula (2000), um computador por aluno (~2005), robótica na sala de aula (~2010), programação na escola (2010+), para citar as mais populares. Os resultados ficaram aquém do esperado e o efeito prático foi a suspensão do investimento.
Preciso enfatizar que os sucessos observados nos episódios anteriores existem. Resultaram da postura crítica de professores, gestores e estudantes que não se deslumbraram pelo mero acesso à tecnologia, refletindo sobre as consequências de sua adoção sobre o processo de ensino e aprendizagem. Mesmo no caso dos evangelistas dos ambientes e tecnologias de última geração, há importantes contribuições de base que precisam ser comemoradas e disseminadas.
A excelente série de vídeos produzida pelo LDI é um desses casos. Ajudará professores a desenvolverem habilidades com o ferramental necessário para produzir aulas em vídeo. Muitos nem sabem por onde começar e precisam de oportunidades de formação para ontem.
5. A promessa não basta
A recente pesquisa realizada pela Ufes, ainda que com baixo número de estudantes participantes (~16,4% dos 20mil), confirma a dificuldade de acesso à Internet e dispositivos necessários para acompanhar aulas 100% digitais por boa parte dos alunos. Em outros países, há iniciativas de empréstimos de notebooks e acesso gratuito à Internet (p.ex. 1, 2) para estudantes realizarem tarefas de casa.
Uma decisão única do Ministério da Educação poderia resolver o dilema: contratação em massa de acesso à Internet das (poucas) operadoras brasileiras, vinculado ao número de matrícula do estudante. Assumindo planos de R$ 50 mensais contratados individualmente, os mesmos R$ 3 milhões fariam diferença para a parte mais vulnerável do corpo discente. Certamente o preço poderia ser reduzido mediante negociação entre Governo e operadoras.
O celular é mais presente no cotidiano do jovem e permite realizar muitas tarefas que computadores desktop, incluindo aquelas encontradas no Moodle (com temas responsivos) ou GSuite (responsivo de fábrica).
6. O acesso não basta
Partindo do momento em que o acesso estiver garantido a todos os estudantes, precisaremos enfrentar a qualidade daquilo que será acessado:
- Produzir revisões sistemáticas sobre os usos das tecnologias educacionais atuais, com meta-análises dos efeitos de cada tipo de intervenção. A maioria dos estudos foi produzida em outros contextos sociais, exigindo replicação da pesquisa ou adaptação dos achados para a realidade brasileira. O mesmo pode ser dito das soluções: o que precisa ser adaptado para contemplar as múltiplas realidades da educação no país?
- Realizar avaliações das intervenções, se possível comparando condições que utilizam diferentes tecnologias para abordar o mesmo conteúdo;
- Disponibilizar guias e orientações que possam auxiliar professores nas escolhas de recursos e linguagens, como fez o LDI, respondendo a questionamentos como aqueles da situação-exemplo XYZWK. As universidades estão repletas de pesquisadores capazes de interpretar achados de pesquisas, o que não é a realidade dos demais níveis de ensino público. A difusão comentada dos resultados será fundamental para mitigar os efeitos da migração repentina para o ensino remoto em todos os níveis.
O maior desafio será orientar as revisões da literatura, conduções das avaliações e produção dos materiais de apoio a contextos específicos. Passamos o século XX criticando modelos educacionais que suprimiam individualidades e não podemos correr para soluções padronizadas na primeira crise deste século.
Mande esperança: hugo.santanna@ufes.br