Dez anos do lançamento do livro “Design sem Designer”
Em janeiro de 2013, lancei a edição independente do meu livro “Design sem Designer” (DSD). Planejei um texto curto, com 64 páginas em formato A5, fácil de imprimir em qualquer gráfica rápida com impressão laser monocromática. Encadernação simples com cola e o velho grampo canoa ajudaram o texto a chegar a muitos lugares.
Nos dois primeiros anos, enviei (manualmente) versões impressas e digitais para pedidos feitos no meu site, além de ter produzido tiragens médias para eventos e palestras. Atualmente, o PDF está disponível de graça e existe uma versão para Kindle pelo preço mínimo da plataforma (USD 1,99; cerca de R$ 6). Recebo mais ou menos R$ 0,50 (sim, cinquenta centavos) do Bezos por mês pelos direitos.
O livro é fácil de encontrar e não tão fácil de ler. A dificuldade parece resultar da apresentação [super] resumida de ideias que me ajudavam, na época, a pensar e praticar a abordagem do design na qual eu me formei — o “Design Social” (veja o panorama em três partes).
A proposta de que “o design acontece apesar dos designers” é bem mais antiga do que o DSD e foi, em certa medida, engolida pelo discurso importado do Design Thinking (DT) em meados dos anos 2000. Esta importação sequestrou décadas de teorização original do Design Social brasileiro, que embora estivesse conectado à realidade local e fosse politicamente mais sofisticado que a versão estrangeira, não foi turbinado pelas mesmas estratégias de comercialização que o modelo difundido pela IDEO e similares: livros lançados por grandes editoras, oficinas de formação, caixas de ferramentas, presenças de palestrantes e consultores internacionais em eventos locais e, é claro, o complexo de vira-latas que aceita prontamente tudo que vem de fora.
Vale dizer que o DT existia antes de ser impulsionado pelo Vale do Silício, outra fonte de inspiração persistente para o vira-latismo brasileiro. Assim como a alternativa original local, a discussão do DT estava confinada aos círculos acadêmicos de design e arquitetura [p.ex., 1, 2, 3]. Foi a mudança de entendimento das empresas que virou o jogo: elas descobriram que as pessoas “existiam” e que projetar “para” ou “com” elas seria um ótimo negócio de relações públicas.
Após quase duas décadas da “descoberta do usuário”, a relação das pessoas com as marcas ficou muito aquém da promessa do DT. No período crítico de isolamento social da pandemia de Covid-19 (2020–2021), os relatos da demissão de equipes inteiras de experiência do usuário (UX), acessibilidade e outras “funções não essenciais” sugerem como o empresariado entende o papel do design na operação dos negócios.
Um dos deslumbramentos mais impressionantes dessas ideias importadas é o “complexo de salvador” — o designer vai salvar o mundo munido de post-its, caixas de LEGO e empatia. Ao contrário das ideias gestadas no Brasil, as variantes do DT não problematizaram o contexto nem os efeitos da ação do designer. Esforços recentes de “gurus” da área para mudar esta situação são emblemáticos. Enquanto isso, equipes de UX criadas para melhorar a experiência de clientes de banco têm a missão ingrata de gerar sorrisos instagramáveis em meio às taxas de juros mais obscenas do planeta. Empresas de telecomunicações investiram em branding para renovar sua imagem, enquanto colecionam reclamações em agências reguladoras e serviços de proteção do consumidor.
As críticas que escrevi no livro fazem mais sentido no Brasil de hoje que na data de lançamento, embora seja pura coincidência. Foi muito bem-vinda, apesar de tardia, a aproximação entre posições críticas no design e debates mais consolidados nas humanidades, influenciados por estudiosos do pensamento decolonial e dos estudos de gênero. Considerando o turbilhão político e social que assolou o país desde que “o gigante acordou” em meados de 2013, esses temas tornaram-se frequentes até em áreas profissionais tradicionalmente integradas, de modo acrítico, à economia capitalista. Posicionamentos políticos de grupos de designers, publicitários e pessoal de TI sobre as desigualdades no país são cada vez mais comuns e extremamente necessários.
Para evitar injustiças (e problemas), não vou indicar exemplos dos variados graus de engajamento desses profissionais no debate público. Existem desde manifestos em defesa da especificidade de segmentos do mercado digital (que infelizmente não mencionaram o contexto político do país nos últimos anos), até coletivos de designers fundados exclusivamente para enfrentar discursos de ódio e condutas fascistas que ocuparam as ruas e o imaginário nacional.
Em um extremo, são exemplares da preservação da “política de boa vizinhança” com o empresariado, que não deseja rupturas da ordem vigente, e da ênfase na [falsa] responsabilização individual do profissional para o “bom funcionamento” da economia. No extremo oposto, são ações que fortalecem a identificação coletiva daqueles profissionais em categorias de gênero, raça, renda, escolaridade e outras que não aparecem, embora afetem fortemente, suas oportunidades de trabalho. É este contexto que o DT e variantes não problematizam, indicando empatia e cocriação para qualquer empreitada: vender cartão de crédito descolado ou resolver o déficit habitacional do país, é tudo design.
Mas é tudo design, mesmo? Talvez o principal equívoco das pessoas que não leram o DSD, e que me criticam apenas com base no título, é a suposição de que eu defenderia que a formação acadêmica em design não seria necessária. As pessoas projetam, mesmo sem formação específica e sem a orientação ou participação de projetistas profissionais. Isto é um fato, não é uma especulação ou alegoria. Seres humanos em geral são projetistas, não o contrário. Nada disso reduz o papel da formação (técnica, superior, autodidata, tanto faz) em design, o que nos leva a outro ponto de ataque do meu livro: os cânones da área, que tentam especificar “o trajeto correto” a ser seguido por estudantes de design, beatificando “os pais fundadores”, “as escolas pioneiras” e outros mitos.
Certamente, podemos falar em habilidades e competências comuns, que estão nas diretrizes curriculares — representação e expressão gráfica, bi e tridimensional; fluência nas linguagens audiovisuais; domínio das tecnologias e códigos vigentes nos arranjos produtivos; compreensão das dimensões política, econômica e social da prática profissional etc. — mas há tantos caminhos para se formar designers quanto há formas de se viver no mundo.
Precisamente, por esta diversidade, que a fórmula mágica da caixa de ferramentas do DT ou a linha do tempo “oficial” da profissão são tão frágeis. Sou professor em cursos superiores de design há quase 20 anos e a insatisfação dos estudantes atuais pela falta de identificação com os cânones nunca foi tão explícita. Necessitamos de histórias, exemplares, métodos, abordagens e designs, tudo no plural.
Esta busca por diversidade, curiosamente, demanda unidade. Argumentei, em outras oportunidades, que a teorização em design é pobre e que há poucos debates públicos sobre ideias dominantes [p.ex., 1, 2, 3]. As contribuições dos estudos decoloniais e de gênero são importantes aportes, pois atacam sem piedade a ordem das coisas assumida como “natural”, e podemos fazer mais do que isso.
Faltam teorias próprias do design sobre o design, que introduzam definições, fundamentos e contornos. Importar teorias das humanidades ou definições das engenharias não é suficiente. Os “pais fundadores” e gerações subsequentes fizeram tentativas relevantes, e pouco importa se eram satisfatórias, pois a área amadurece por meio do debate. Se a atividade dos designers não se reduz aos ditames dos pais fundadores, nem à reprodução acrítica de métodos importados, o que pode explicá-la?
A estratégia do Design Social, que é a mesma que fiz no texto de DSD, é baseada na relação com as pessoas. O estudo da psicologia humana, em todas as suas vertentes, ressignifica o design, como comentei durante a participação no podcast Design & Cotidiano. Esta interlocução não é nova, nem foi proposta por mim, pois as disciplinas cognitivas apoiaram as muitas tentativas de formalização da profissão desde a primeira hora. A diferença é que as encarnações atuais do design, notadamente aquelas cooptadas para gerar demandas de consumo, instrumentalizaram o conhecimento sobre a psicologia humana contra as pessoas: engajar, manter, entreter, invejar, desejar.
No Design Social, que a meu ver é uma teoria do design propriamente dita, assumimos que não há projeto sem o outro, não porque somos legais, democráticos e inclusivos. É porque este outro é a condição para que a minha prática projetual supere os limites da minha individualidade e das minhas concepções de mundo. É este outro, presente ou idealizado, que distancia gradualmente o design das demais disciplinas projetuais, tais como a arquitetura, engenharia ou administração. Quanto mais idealizado (p.ex., personas) ou estatístico (medidas de tendência) for este outro, mais limitado e congelado tende a ser o design no tempo e espaço. Quanto mais presente e ativo for o outro, mais potente e aberto pode ser o design à atualização pelas próprias pessoas.
Diferente de alguns colegas, não vejo problemas com a figura do “usuário”. A existência do usuário não me parece definida pelo capitalismo, mas pelo reconhecimento de que há outro diferente de mim (ainda que seja meu “eu do futuro”) como alvo do meu pensamento de projeto. Caso contrário, seria impossível pensar em design fora do capitalismo, o que seria ridículo. A opressão daquele outro é um defeito do sistema que sequestra, restringe e elitiza a prática de projeto, não um problema intrínseco da alteridade que define a natureza do ato projetual. Via de regra, projetos considerados opressores adotam o outro idealizado ou estatístico, pois é a abstração dos indivíduos, a supressão de suas intenções, crenças e desejos que esvazia de sentido a relação. O problema está no eufemismo de invocar o usuário, quando temos um cliente ou consumidor em mente.
De volta ao DSD, eu defendi que as tecnologias digitais nos ajudaram a recuperar a capacidade projetual das pessoas comuns, perdida desde o auge da revolução industrial. Observamos a explosão de comunidades de “faça você mesmo” em segmentos anteriormente controlados por monopólios e patentes. Engenharia reversa, gambiarras, softwares livres e de código aberto eram bons exemplos, como também são os projetos de habitação social, de próteses abertas para impressão 3D, consoles fantasia e as comunidades de aprendizagem online. Uma década depois, as possibilidades são ainda mais ricas e variadas.
A figura dos influenciadores não estava no meu horizonte em 2013. Me interesso mais pelos produtores de conteúdo de nicho do que pelas celebridades que funcionam como velhos conglomerados de mídia um-todos. Muita gente, que jamais teria espaço nas mídias tradicionais para difundir suas ideias e defender suas causas, conquistou oportunidades em função da disseminação das tecnologias de informação e comunicação. Ainda há problemas, assimetrias no acesso e no alcance. Não obstante, e em geral, acredito que as mudanças abriram mais espaços que fecharam. Cabe ponderar que, no Brasil, também depois de 2013, tal abertura causou e ainda causará muitos problemas de desinformação. É parte do jogo.
DSD é um modelo para o processo de design [social], não uma teoria. Se posso citar outra teoria que me orientava na época, além do Design Social, esta seria a Cibernética, como discutida por Humberto Maturana ou Jean Piaget. Atualmente, a Teoria do Controle Perceptivo, proposta por William T. Powers e colaboradores, tornou-se meu aporte cibernético principal.
Ao final de DSD, apresentei um programa de pesquisa que segue ativo, embora mais direcionado às relações entre design, psicologia e computação em situações concretas de ensino [produção recente: 1, 2]. A proposta [cibernética] de que processos de design se organizam como sistemas dinâmicos ocupa a maior parte do meu tempo, com interesse especial pela investigação e compreensão das ações estruturadas (subordinadas às regras do sistema) e ações estruturantes (que fundam as próprias regras, o sistema e o perpetuam).
Por fim, havia um plano de lançar uma edição revista e ampliada de DSD, com muitas notas de rodapé e texto consideravelmente mais longo. A iniciativa falhou por três vezes e decidi abandoná-la definitivamente. Dez anos depois, ainda concordo com os argumentos gerais do livro, mesmo encontrando caminhos melhores para comunicá-los.
Agradeço imensamente a quem leu e comprou o livro, ou me convidou para palestras e discussões sobre a temática na década que passou. Peço desculpas a quem desistiu pelo caminho e reafirmo meu compromisso de produzir textos menos hostis 😊
O livro segue disponível para download: Design sem Designer (PDF).