Conflito e carreira

Hugo Cristo
8 min readJan 29, 2023

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Nota: Este texto foi publicado no meu blog em 29/01/2023.

O Método dos Níveis (Method of Levels, MoL — cf. Mansell, Carey, & Tai, 2013; Carey, 2006), aplicação direta da Teoria do Controle Perceptivo (Perceptual Control Theory, PCT — Powers, 1973; 2005) à psicoterapia, dispõe que experimentamos conflitos quando tentamos satisfazer objetivos incompatíveis simultaneamente. Enquanto seres vivos autônomos, nos engajamos em ações para trazer o estado de coisas para condições que consideramos ideais. Em inglês, fala-se em “just rights”; em português poderíamos dizer “do jeito certo”, “no ponto” ou “na medida”.

Percebemos continuamente as situações em que nos encontramos, as comparamos com o que estaria “na medida” e, caso haja diferenças (o “erro”), atuamos para reduzi-las. Na PCT, estes laços de controle estão organizados hierarquicamente, de modo que níveis inferiores estão associados a “como” as pessoas querem que as coisas sejam, e níveis superiores se relacionam a “por que” as pessoas querem ou desejam as coisas daquela forma. Controlar é o que seres vivos fazem — controlamos, continuamente, nosso entorno, nossas relações e demais estados de coisas, tendo em vista as condições que julgamos “ideais”.

Não se pode impor as condições ideais a outras pessoas, tampouco é possível inferir quais condições seriam essas, apenas por meio da observação das ações dos indivíduos. Uma situação pode ser percebida como adequada ou inadequada por pessoas diferentes, ou pela mesma pessoa em outros momentos, e ações similares na forma podem estar vinculadas a condições de referência distintas.

Por fim, a persistência de conflitos pode levar à perda de controle e mal-estar. Nesse sentido, a reorganização é um processo inato de aprendizagem que gera mudanças contínuas na organização interna do indivíduo para recuperar o controle.

MoL e PCT têm me ajudado a pensar a vida e meus conflitos na carreira. Alcançar a consciência sobre eles não foi um processo trivial ou livre de sofrimento, pelo contrário. Os princípios situados nos níveis mais elevados da minha hierarquia, que fornecem condições de referência para as minhas experiências (de mundo e no mundo), têm se demonstrado cada vez mais incompatíveis. Isto causou desconforto persistente e ações erráticas nas escolhas que fiz no trabalho e na vida.

Propósitos

Em 2023, completo 20 anos de formado, mas eu trabalho profissionalmente como designer (i.e., carteira assinada) desde 1998. Em 2024, completarei 20 anos como docente no ensino superior, 15 deles no magistério federal. A maior parte da atuação como profissional e docente correspondeu às interfaces entre design e tecnologia, que são minha absoluta zona de conforto. Sendo mais preciso, convivo com computadores pessoais desde muito cedo (estava na 3ª série do “primário” quando tive meu primeiro MSX, em 1989). Passei a adolescência toda programando e absolutamente fascinado com tudo que envolvia computadores: computação gráfica, música e ilustração digital, a Web (publiquei meu primeiro site em 1996 no GeoCities) etc. Quando as pessoas citam a geração dos “nativos digitais”, eu gosto de lembrar que fui da equipe que capinou o terreno, quando tudo ainda era mato, antes de construírem a maternidade para esse pessoal que nasceu com o celular na mão.

Mesmo assim, decidi conscientemente (e não me arrependo) fazer a graduação em Design em vez de Computação. Perdi as contas dos sites e sistemas online que desenvolvi, das identidades visuais e projetos gráficos que realizei. Trabalhei para empresas de todos os portes, das gigantes da indústria capixaba a pequenos agricultores anônimos. Tive clientes fora do ES e no exterior. Tive o privilégio de fazer a pós-graduação que escolhi: mestrado, doutorado e estágio de pós-doutorado em Psicologia. Sou docente no curso de graduação em que me formei e no programa de pós-graduação em que me titulei. Ganhei prêmios, palestrei pelo país, publiquei artigos e capítulos, editei meus próprios livros. Sou dono e autor da maior parte das ferramentas que uso no meu trabalho, seja como docente ou pesquisador. Definitivamente, não posso reclamar, e aqui estou.

Onde estão os conflitos?

A experiência do ensino remoto emergencial durante a pandemia de Covid-19 (2020–2021) foi a mais desafiadora da minha carreira. O problema é que o desafio resultou da ingerência das pessoas que deveriam se portar como cientistas e educadores, em vez de burocratas. Em outros termos, se as pessoas com poder de decisão levassem a educação pública a sério, eu não teria tido tantos “desafios” para enfrentar.

Todos os limites do desrespeito ao meu trabalho como docente e como servidor público foram ultrapassados. Entre colegas de universidade, dizemos que “pagamos para trabalhar”, pois sempre assumimos despesas e aqui e ali para compensar falta de recursos e estrutura. Durante a pandemia, isso foi a regra. Na verdade, o ensino remoto e emergencial foi um esforço de CPFs compensando a incapacidade de CNPJs funcionarem como deveriam. As marcas deste período, ao menos para mim, são globais e persistentes (principalmente na saúde).

Meu primeiro conflito é que a “defesa do ensino público gratuito e de qualidade” é uma ficção útil, que ajuda a instagramar hasteamento de bandeiras em datas simbólicas. Pessoas mencionam essa frase como um mantra que suprime magicamente todas as incoerências de um sistema que não percebe ser a causa de seus problemas.

Não tenho interesse em apontar casos específicos que vivencio no meu trabalho para ilustrar as incoerências, pois isso pode expor a parte mais frágil e mais afetada — o corpo discente. Basta mencionar que denúncias raramente são consideradas, ou que estudantes são tratados como preguiçosos, desmotivados e desinteressados por definição, sem que se pondere sobre a nossa contribuição, como docentes, para tal diagnóstico. Como já disse em outras vezes, a afirmação exemplar é “eu ensinei, se o estudante não aprendeu, o problema é dele”.

Neste país, apenas um (1) de cada cinco (5) estudantes com idade para frequentar a universidade está matriculado. Ao mesmo tempo, níveis elevados de evasão e não ocupação de vagas são reais e continuam aumentando. Para a minha surpresa, ouço colegas defendendo a redução do número de vagas de ingressantes, em prol da “qualidade do ensino”. Afinal, a explicação para a evasão está na desmotivação e desinteresse dos estudantes — “ficarão apenas aqueles que realmente querem alguma coisa”. O argumento se fecha brilhantemente.

Conflitos e oportunidades

Há muitas oportunidades na docência. Conhecer gente jovem todos os semestres é um presente: cada novo filme, banda ou habilidade que as turmas me apresentam, mitigo a mesmice inevitável da prática docente. Sempre podemos mudar exemplos, projetos ou leituras, mas a espinha dorsal das disciplinas (e do curso) são perenes. Se o professor não for alguém tão atento aos estudantes, corre o risco de repetir a mesma disciplina por anos sem nenhum problema — mesmos trabalhos, mesmas provas, mesmos slides e piadas.

A docência nas universidades é acompanhada pelas atividades de pesquisa e extensão que, se por um lado oxigenam a sala de aula, por outro podem igualmente se perder na repetição do que funciona. Pesquisas de qualidade requerem tempo e dedicação, o que está na contramão das pressões por publicar frequentemente e em quantidade. Aquele dado inesperado, que abre portas infinitas para novas investigações e coloca a pesquisa atual em segundo plano, é absolutamente irresistível para mim.

Meme do rapaz (eu) que caminha com a namorada (leitura atual) e se distrai com outra pessoa (nota de rodapé).
Amor incondicional por notas de rodapé.

Invejo a paciência e disciplina dos colegas que conduzem a mesma pesquisa por anos, qualificando gradualmente o trabalho. Sei que é o caminho ideal para trabalhar com mais foco, para não estar sempre iniciando projetos, mas não resisto e tenho muito prazer em espiar o que está acontecendo ali ao lado.

O mesmo ocorre com a extensão, que funciona melhor (e tem mais apoio institucional) quando persiste ao longo dos anos. A questão é que a extensão é um diálogo, uma conversa com o que acontece fora dos muros da universidade, e o tempo desses acontecimentos é outro. Enquanto precisamos de quase 60 dias corridos de antecedência para propor um projeto de extensão, as demandas das comunidades, grupos e empresas com as quais trabalhamos mudam o tempo todo. Escrevo projetos cada vez mais genéricos para comportar o imprevisível, dando um jeito de acomodar o tempo do mundo ao tempo da universidade.

Este é o segundo conflito: as universidades têm papel fundamental na vida das pessoas com as quais interagem, seja no ensino, na pesquisa ou na extensão. De modo geral, acredito que a minha instituição melhorou muito no diálogo com o seu entorno desde a minha época de estudante (1998–2003). Saímos de esbarrões acidentais para diálogos duradouros; partimos de poucas áreas, que compensavam omissões do estado, para interações de mão dupla relevantes e espalhadas pelo campus.

Tem gente que acha que está ótimo: o tempo dentro dos muros é diferente mesmo; é preciso equilibrar foco, produtividade e curiosidade; “as pessoas passam e a universidade fica”. Tentei de todas as formas me ajustar a esses esquemas, sem sucesso.

Existem outros aspectos dessas tensões que não me incomodavam antes, e que agora são um elefante branco na sala. Não tenho a mesma relação com a área em que me formei, a ponto de optar por não discutir questões contemporâneas do Design para evitar ser a pessoa que só vê problemas. Faço comentários aqui e ali, escrevo artigos sobre temas específicos, bem distantes dos assuntos da moda.

Me tornei, com a ajuda das minhas pesquisas em Psicologia e Computação, um prestador de serviços para aqueles que querem discutir o “design verdadeiro”, seja lá o que isso quer dizer. Foi uma boa saída até aqui, embora não seja sustentável por mais 20 anos. Se eu fosse um profissional desmotivado com o campo, trabalhando para pagar as contas, não haveria problemas. No entanto, pelo menos por enquanto, ainda sou professor de um curso superior de Design. Se nem quem ensina acredita no roteiro, imagina quem aprende.

Reorganização

Iniciei a transição de carreira, sem saber qual será o destino. Antes, eu pensava que não me aposentaria como professor. Atualmente, penso que não tenho mais cinco anos no magistério, ou pelo menos não no ensino superior. Estudar tanto sobre educação me despertou o interesse pela educação básica… Quem sabe? Estou investigando formas de continuar fazendo que faço de melhor, em outros lugares (sejam novos CNPJs, CEPs ou países).

Parece insanidade abrir mão da estabilidade do serviço público e de anos investidos na docência e pesquisa. Vivi este conflito, e ainda vivo. Entretanto, retomando a questão de as “condições ideais” serem diferentes para cada pessoa, tais atrativos pararam de me motivar há algum tempo. A vida precisa seguir, as contas precisam ser pagas e vou levando do jeito que dá, fazendo o melhor possível onde ainda estou, mesmo com limites pessoais ultrapassados.

Isso não significa autoengano, nem falta de coragem. Nossa sociedade está repleta de conselhos para que se persiga a felicidade e realização pessoais a qualquer custo: “liberte-se de trabalhos que não te completam”, “faça o que ama”, “você é responsável pelo seu sucesso”. Para mim, a realização pessoal é mais afetada pelas pequenas, triviais e contínuas recompensas, um dia após o outro, do que pelo alcance de feitos emblemáticos.

Fazer o que acredito implica manter a vida fora do trabalho em ordem, cuidar da família e da saúde, cultivar e valorizar o ócio. Trabalhar para viver, não viver para trabalhar. Se for possível reduzir os conflitos no meu trabalho, ótimo. Caso contrário, vida que segue. Não sou responsável pelas omissões e incoerências de quem toma decisões que me afetam. Preciso, no máximo, me proteger e não comprar o discurso de que a situação não melhora porque não me esforcei o bastante.

Por enquanto, me satisfaço declarando o objetivo de mudar, compreendendo a implicações e consequências da mudança, e agindo para que ela possa ser cada dia mais viável. Pensar sobre esses conflitos ajuda, escrever também. Com tanto sucesso por aí nas redes, a percepção de que há algo errado só comigo parece o fim do mundo.

Não é só comigo e está tudo bem, o mundo não vai acabar (ainda).

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