Aposentadoria precoce honorária

Hugo Cristo
9 min readJan 10, 2025

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Este texto foi publicado no meu blog em 09/01/2025 — hugocristo.com.br

No recesso de 2024 e férias deste início de 2025, fiz um conjunto de leituras fora do meu cardápio tradicional: 1) “Creator Economy for Authors” (Michael Evans), 2) “Morra sem nada” (Bill Perkins) e 3) “O homem mais rico da Babilônia” (George S. Clason). São livros de leitura fácil e ótimos para preencher o tempo longe das telas.

Livros: “Morra sem nada” (Bill Perkins), “Creator Economy for Authors” (Michael Evans) e “O homem mais rico da Babilônia” (George S. Clason).

O primeiro discute como autores podem explorar a criação de conteúdo nas redes sociais para publicarem seus trabalhos por conta própria. É uma das muitas possibilidades para se converter influência e alcance em vendas, sem ignorar a dificuldade de se produzir livros como quem publica a rotina nas redes: o tempo todo, para consumo rápido, fácil de compartilhar e replicar entre os contatos. Tenho dois textos em progresso, ambos na expectativa de se tornarem livros: manual do openEvoc (antes tarde do que nunca) e “O fim da educação”, com ensaios e reflexões sobre a encrenca de se ensinar e aprender nos tempos atuais.

O livro de Michael Evans foi uma pechincha na Black Friday, comprado por míseros R$ 15, enquanto o preço de capa está por volta de R$ 115. O autor tem uma plataforma para escritores, com toda a parafernália para se viver do que se escreve. São muitas orientações compatíveis com os cursos que fiz no ano passado sobre essa “economia” dos criadores de conteúdo — uma trabalheira infernal que dá saudades do século passado.

O segundo livro, escrito por um investidor do mercado de energia nos EUA, tem relação com a crise dos 45, amplamente conhecida. Nesta fase, estamos velhos demais para recomeçar qualquer coisa e jovens demais para jogar a toalha. Com 25 anos de trabalho registrado para trás e cerca de mais 20 pela frente, comecei a me interessar pelas decisões que as pessoas tomam para tirar o melhor proveito na minha idade, quando ainda há saúde e condições físicas para atividades intensas (p. ex., esportes de impacto ou viagens mais duras, com trekking e afins) e vida financeira bem mais confortável que aos 30.

Os diferentes equilíbrios entre saúde, tempo e dinheiro nas fases da vida (Bill Perkins, p.116).

Perkins é bilionário, então a leitura precisa de doses cavalares de responsabilidade e contextualização. Ainda assim, há dicas interessantes e uma interpretação respeitável do papel do trabalho na nossa vida, com destaque para a discussão do equilíbrio entre saúde, tempo e dinheiro, desde a juventude até o dia da morte. Tudo começa com a retomada da fábula da cigarra e da formiga, que embora nos lembre da importância do trabalho e dos riscos de se viver na esbórnia, oferece ensinamentos restritos sobre o dilema das finanças pessoais.

O autor apresenta um ponto de vista novo da história, ao menos para mim, de que a formiga se lascou de trabalhar, deu a vida pelos preparativos para o inverno, e provavelmente morreu sem aproveitar nada. Como as formigas operárias vivem muito menos que as rainhas, a reinterpretação da fábula mereceria “A Internacional” como trilha sonora. Entretanto, a proposta de Perkins não é nem cigarra nem formiga, mas (para variar) o caminho do meio.

A principal sugestão do autor é definir (estimar) o dia da morte e fazer as contas do que se deseja de hoje até lá. Parece fúnebre, e é um pouco, o que não diminui o valor de se fazer a conta. Uma vez feitos os cálculos, o plano é morrer sem deixar nada, nada mesmo. Pensou em deixar algo para a caridade? Doe agora e viva para ver as consequências. Herança para os filhos? Prepare o futuro deles para dar segurança, mas aproveite seus recursos com eles em vida. Quer apoiar causas ou começar algo que faça a diferença? Não seja apenas uma placa de agradecimentos, faça essas coisas já. Como eu disse, empregue doses cavalares de responsabilidade nessa leitura.

O terceiro livro estava na minha lista das curiosidades faz tempo. Pulou para o topo depois que um amigo de infância (@rcarraretto) recomendou o título entre suas dicas sobre finanças no Instagram. A história de Arkad, o tal homem mais rico, reúne relatos da sabedoria popular sobre nossa relação milenar com o dinheiro. Tudo se passa na Babilônia, aquele lugar famoso e maneiro da antiguidade onde tudo era bonito, belo, culto e rico, mas também muito pobre e desigual. O que eu não sabia é que o George Clason publicou o texto nos anos 1920 e que não é um desses autores contemporâneos de “autoajuda da prosperidade”. Ele teve uma vida aparentemente interessante, criou o primeiro mapa rodoviário nos EUA e materiais que provavelmente são os ancestrais do meu amigo e da Nath Finanças.

As aventuras de Arkad valem a leitura, especialmente por trivializarem conselhos vendidos atualmente a auditórios lotados como se fossem novidades. Logo de início, podemos identificar precursores das recomendações de Perkins sobre como poupar e lidar com o dinheiro economizado, sobre a importância de priorizar os gastos, os cuidados com a casa e a segurança da família, a necessidade de se desenvolver como indivíduo, além da tarefa indispensável de compartilhar aquelas lições básicas a qualquer pessoa. Havia muito ouro na Babilônia, nos bolsos de poucos, mais por falta de educação financeira do que por qualquer outra coisa. O livro, ainda bem, não descamba para visões elitistas da acumulação de dinheiro, tais como “pobre é pobre porque não sabe economizar” ou “não dê o peixe, ensine a pescar”. Muitos personagens são trabalhadores comuns que desconhecem formas de organizar sua vida financeira. Novamente, nada muito diferente do que Nath Finanças e similares explicam em linguagem simples e direta.

Essas leituras fazem parte do meu plano de não ter mais planos (rs) e de começar a desfrutar daquilo que chamam por aí de aposentadoria precoce, só que honorária. Se você é rico e tem dinheiro suficiente guardado para manter seu padrão de vida sem trabalhar, pode se aposentar precocemente. Para o resto de nós, há todo um espectro de possibilidades que depende da vida que levamos, da saúde que temos e do tempo que queremos para fazermos o que desejamos. É honorária por isso, porque a maioria de nós não tem a chance de chutar o balde de vez tão cedo, a despeito de que podemos esvaziá-lo com uma canequinha aos poucos.

Uma surpresa do livro de Perkins são as ponderações sobre a situação das pessoas que precisam trabalhar, sob a ótica de um bilionário (mais uma similaridade com Arkad). Uma parte das ideias que ele defende, lastreada em dados sobre trabalho e aposentadoria nos EUA, é que gente de todas as faixas de renda morrem, deixando para trás, recursos que poderiam ter oferecido mais qualidade de vida, em vida. Ele cita pessoas que, mesmo aposentadas, continuam guardando o pouco que têm, levando vidas muito simples até o fim; ou de bilionários que, mesmo sem ter mais onde enfiar dinheiro, continuam trabalhando 12h por dia. É o fetiche pelo trabalho e pelas economias em si mesmo.

Demorei muito a entender que a docência é apenas mais um trabalho. Tem gente que adora essa vida, que se motiva a trabalhar 60h por semana para dar conta de tudo que inventa. Estive nessa condição por muitas vezes, ao longo desses 20 anos de ensino superior. Minha avaliação pessoal neste estágio da carreira é que eu poderia ter equilibrado melhor o trabalho e o cuidado com a saúde, poderia ter me dedicado mais às amizades que acabaram ficando para “quando desse tempo”, e poderia ter cultivado passatempos e atividades desconectadas daquilo que paga meu salário. Não há como saber se eu estaria no mesmo lugar se tivesse escolhido outros caminhos, embora a reflexão que faço, aos 45 anos, de tudo que fiz desde os 20 e poucos, seja bem dura.

Eu passei da fase de ter a carreira no centro da minha vida e dos meus interesses. Há alguns anos, consegui parar de trabalhar aos sábados e domingos. Após a pandemia, tenho terminado o expediente quase sempre por volta das 18h (começando às 8h e fazendo 30min de almoço) e não me motivo facilmente com convites para coisas novas. Tenho diminuído meus interesses a ponto de ter hiperfocos persistentes (estudar uma coisa de cada vez?) e tenho menos incertezas sobre o que espero estar fazendo na próxima década (essa única coisa que estou estudando). Estou reavaliando meu envolvimento com a pós-graduação, com atividades administrativas, projetos, editais e todas as coisas que acrescentam mais duas ou três horas diárias na minha jornada. Dar aula para as gerações atuais é um baita desafio, não sei se preciso de outros.

A aposentadoria precoce honorária é uma postura que decorre da compreensão de que você deu conta, independente do que faça, de quanto ganhe e da própria necessidade (ou possibilidade) de continuar trabalhando. Aposentar parece um prêmio especial, definido a partir do estilo de vida da classe média, como se fosse parte do “grande plano” da sociedade para aqueles que chegaram no horário, fizeram seus papéis, contribuíram com as suas partes, entregaram o que deviam, pagaram seus boletos e comeram toda a comida do prato. E nem assim basta.

Por um lado, atletas, esportistas e artistas (especialmente mulheres) são aposentados à força muito cedo, pois “deram tudo o que tinham” ou “ficaram velhos”. Por outro, trabalhadores pouco especializados jamais poderão se aposentar, uma vez que nunca sobra e para sobrar é necessário seguir trabalhando, ainda que seja até morrer.

Cada um de nós e a sociedade da qual fazemos parte somos patologicamente induzidos a fazer mais. Nada nunca está bom, jamais estará pronto, completo ou terminado. Há sempre um novo projeto para iniciar, uma tecnologia recente para aprender, uma outra coisa para ler, um próximo evento para participar. Ao mesmo tempo, esperamos ingenuamente pela tal aposentadoria da classe média, distante, segura e monótona, quando enfim faremos absolutamente nada. Mudaremos para o Caparaó e teremos uma vidinha tranquila.

Este cenário improvável decorre mais das projeções das nossas limitações do que de intenções reais, pois a nossa mesma sociedade jamais vai permitir que pratiquemos o ócio, sejamos ricos ou pobres. Mudaremos para a roça para plantar café especial com genética pós-quântica, faremos uma especialização em comércio internacional com criptomoedas para fornecer grãos torrados com tecnologia da Open AI a cafeterias instagramáveis, financiadas por influenciadores da extrema-direita que colonizarão Marte. Tudo muito simples e tranquilo.

A velhice tornou-se a “melhor idade”, nunca estaremos tão saudáveis, tão ativos, em tanto movimento. Nem nossos avós nem nossos pais deram conta e nós daremos, pois faremos mais. No extremo oposto, a infância está igualmente ocupada. Múltiplos idiomas, atividades, escolinhas, empreendimentos. Na minha infância, nos anos 1980, eu literalmente brincava de cavar buracos na areia no recreio. Os pirralhos de hoje fundam startups. Me senti um rebelde revolucionário quando tentei matar aula de literatura no ensino médio. Hoje, temos coaches-mirins que ganham dinheiro defendendo que a escola não serve para nada.

Estude para ser pobre! (UOL, 09/01/2025)

Comprimida entre a infância disruptiva e a terceira idade triatleta, a vida adulta parece ficar em suspensão, esperando pelo que não virá e trabalhando no que continua vindo. É aí que a aposentadoria precoce honorária faz sentido para mim: equilíbrio (piagetiano) entre a necessidade de continuar trabalhando (para fazer a sua parte, pagar as contas e garantir o futuro) e o resto da vida (saúde, relacionamentos, paixões). É inverter as prioridades, de modo que a razão do trabalho seja a vida e não o inverso, e que se possa desfrutar dos resultados do trabalho em vida, com saúde.

Então, iniciando minha vida de aposentado honorário em 2025, terminarei muitas coisas e não começarei nenhuma, exceto obrigações, livros e passatempos. Não tenho mais muitos degraus na carreira (que legal, né?) nem tantas coisas no trabalho que ainda não fiz e gostaria de fazer. Orientei um bocado de gente bacana na graduação, iniciação científica e pós-graduação. Participei de bancas, dei cursos por aí, fiz bons amigos e parceiros.

Se a Greta estiver certa, há muitas coisas no mundo para ver e conhecer antes que desapareçam. Se o Donald estiver certo, já que o Karl estava, o trânsito de pessoas pelo mundo será cada vez mais restrito a uns poucos privilegiados e ao capital, livre, leve, solto e de direita. São ainda mais razões para ver e conhecer o mundo enquanto dá, principalmente gente.

As disciplinas, atividades administrativas sob a minha responsabilidade e os projetos que coordenarei até seus respectivos encerramentos não são pouca coisa. Os livros ficarão prontos, mais cedo ou mais tarde, funcionando como fechamentos de ciclos relevantes do meu trabalho como professor e pesquisador. Em outros tempos, estaria preocupado em como ocupar o espaço que “sobraria” na agenda quando concluísse essas tarefas. Aposentado, ainda que de modo honorário, só estou pensando em não inventar nada e aproveitar o tempo livre para, sei lá, caminhar na praia.

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Hugo Cristo
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Written by Hugo Cristo

Designer, professor da UFES, doutor em Psicologia. Coordenador do Forma/UFES, Director At-Large da IAPCT. Design + Psicologia + Computação.

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